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Por Raimundo Bonfim*
Nas primeiras horas do último 1º de Maio o Brasil assistiu a umas das maiores catástrofes urbanas dos últimos tempos: o trágico incêndio que levou à ruína o Edifício Wilton Paes de Almeida (de propriedade do governo federal) no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, causando perdas materiais e humanas, posto que, em 10, dos 26 andares, abrigavam-se quase 200 famílias.
O drama das famílias teve repercussão internacional. Imediatamente as vítimas receberam, de um lado, muita solidariedade traduzida em doações de roupas e alimentos; de outro, declarações de autoridades culpando-as pela tragédia e criminalizando movimentos populares que lutam pelo direito à cidade e à moradia.
Tentam construir uma narrativa de culpa das vítimas pela tragédia e de criminalização dos movimentos populares organizados, ao invés de admitir que existem no centro de São Paulo centenas de prédios abandonados que não cumprem nenhuma função social.
Propalam a situação irregular do prédio e da cobrança indevida e abusiva de aluguel por parte de falsas lideranças para justificar uma onda de reintegrações de posse.
A Polícia Civil de São Paulo instaurou inquérito para investigar eventuais cobranças de taxas na ocupação do Largo do Paissandu e outras ocupações da cidade.
Não nos opomos à investigação, até porque condenamos e somos contra a prática de crime de extorsão, no caso, dos trabalhadores sem-teto. Mas por que não investigar também a responsabilidade dos governos federal e municipal por descumprimento da função social da prioridade?
A Central de Movimentos Populares (CMP) tem vários grupos filiados que se organizam coletivamente, ocupam prédios, realizam protestos, formulam propostas e cobram dos governos a implementação de políticas de habitação em São Paulo, em especial na região central da cidade. O grupo que liderava a ocupação no Largo do Paissandu, no caso, não é ligado à CMP.
Fruto dessa atuação e organização coletiva, já conseguimos reformar prédios e destiná-los à moradia popular, como, por exemplo, os empreendimentos das ruas e avenidas Joaquim Carlos, Madre de Deus, Celso Garcia, Maria Paula, Conselheiro Crispiniano, Ipiranga, dentre outros, todos no centro de São Paulo.
A dor, o sofrimento e o medo - não só das famílias atingidas pela tragédia de 1º de Maio, mas de milhares que sobrevivem em prédios, favelas e cortiços - parecem não sensibilizar os responsáveis por assegurar o direito social à moradia, previsto no Artigo 6° da Constituição Federal.
Uma tragédia dessa magnitude deveria nos proporcionar um debate honesto sobre a necessidade inadiável de se aplicar o princípio da função social da propriedade, indispensável para combater a especulação imobiliária e garantir moradia à população de baixa renda.
Mas não é o que temos percebido, nem em relação aos governos, nem por grande parte da mídia. Não se debate, por exemplo, o fato de 1% dos donos de imóveis concentrarem 45% do valor imobiliário de São Paulo. Esse dado demonstra que a cidade virou um grande negócio, uma mercadoria valiosa, da qual poucos têm acesso e à maioria é negado o direito à moradia, devido ao alto custo da terra, sobretudo nas áreas centrais.
Uma cidade dominada pelos interesses do setor imobiliário tem como resultado, segundo o Plano Municipal de Habitação (2016), um déficit de 385 mil moradias. Enquanto faltam moradias, na cidade existem 1.385 imóveis ociosos, isto é, abandonados ou subutilizados. Além do déficit qualitativo, existem 1,2 milhão de pessoas morando em áreas irregulares, mesmo a cidade dispondo de 290 mil imóveis vazios ou subutilizados.
A tragédia no centro de São Paulo escancara a enorme crise social da falta de moradia nas grandes e médias cidades brasileiras. Nem mesmo programas importantes como o Minha Casa, Minha Vida conseguiram resolver esse drama de milhões de pessoas.
De 2009 a 2015 o governo federal investiu 100 bilhões de reais na área de Habitação, o que permitiu a construção de 3,7 milhões de unidades habitacionais, de 2009 e 2017.
O drama da falta de moradia vai aumentar diante da crise econômica. Com 13,7 milhões de trabalhadores desempregados, as famílias de baixa renda não têm condições de pagar aluguel, e o governo federal praticamente acabou com o programa Minha Casa, Minha Vida para a faixa I, até R$ 1.800,00.
O grande diferencial do MCMV em relação a programas anteriores é que ele estabeleceu subsídios para famílias de baixa renda. Sem a medida, essa faixa de renda não tem como acessar a casa própria.
O problema é que mesmo os governos Lula/Dilma ficaram presos a alianças com partidos políticos e setores conservadores - o que impediu a alteração da estrutura fundiária urbana - se limitando a construir casas, o que já foi um enorme avanço, é verdade.
Mas nem a isso o atual governo consegue dar continuidade e a crise social decorrente da falta de moradia tende a aumentar e provocar a explosão da insatisfação e revolta nos centros urbanos.
O congelamento de investimentos por 20 anos nas áreas da Educação, Saúde, Habitação e Assistência Social vai jogar, no curto prazo, milhões de pessoas na extrema pobreza e na miséria, que terão como alternativa de moradia, apenas os prédios abandonados, favelas e beiras de córregos – locais sem infraestrutura urbana, serviços públicos, espaço de lazer e cultura.
Tentam passar para a opinião pública a ideia de que todos os movimentos populares agem da mesma forma que as lideranças do prédio que pegou fogo e desabou. Não pactuamos, nem defendemos quem usa da miséria de trabalhadores sem teto para exploração econômica. Mas essa não é a questão central; isso é desviar o foco.
O que está em jogo é a disputa entre quem quer construir uma cidade que seja acessível a todos ou quem a quer somente para alguns auferirem lucros. É falsa a narrativa de que existe uma indústria de invasões, tampouco máfia de sem teto. A verdade é que os movimentos populares sem teto estão sendo caluniados porque suas atuações jogam luz e denunciam a máfia da especulação imobiliária.
*Raimundo Bonfim é coordenador nacional da CMP (Central de Movimentos Populares)