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A partir da luta dos povos bolivianos e equatorianos, que se consagrou nas novas constituições destes dois países, o bem viver deixou de ser uma solução utópica e um modo de vida característico de comunidades indígenas, tidas como selvagens em contraposição ao nosso modo de vida civilizado, para se constituir em uma alternativa para a desconstrução da matriz colonial que esteve na base da organização econômica inclusive dos governos progressistas das últimas duas décadas na América Latina, com a ênfase no extrativismo que ameaça justamente os povos indígenas e as suas terras
Por Marcelo Sares*
“Acho que devíamos devolver este país para os índios”.
Quem nunca viu ou ouviu esta frase, principalmente em momentos de crise como agora, em que não vemos alternativas ou projetos de país e tanto as elites como as esquerdas transformaram o Brasil em um imenso vazio de significados?
Pior que a grande maioria das pessoas que faz este desabafo não tem um compromisso real com a defesa dos povos indígenas e muitas vezes é cúmplice do genocídio sofrido por eles ao longo dos mais de 500 anos da nossa história.
Mas o que parece uma solução mágica e irrealizável pode originar uma reflexão sobre a origem desta crise econômica, política e mesmo civilizatória em que estamos metidos. E esta origem tem nome: é o capitalismo com suas contradições e ciclos, com sua lógica do lucro custe o que custar, mesmo que esse custo seja nossa própria sobrevivência enquanto espécie.
E nos últimos anos tem crescido no campo das esquerdas o debate sobre o bem viver, o sumak kawsay em kchwa, ou teko porã em guarani, como uma possibilidade de construção de outro tipo de sociedade, sustentada em uma convivência harmoniosa entre os seres humanos e destes com a natureza.
A partir da luta dos povos bolivianos e equatorianos, que se consagrou nas novas constituições destes dois países, o bem viver deixou de ser uma solução utópica e um modo de vida característico de comunidades indígenas, tidas como selvagens em contraposição ao nosso modo de vida civilizado, para se constituir em uma alternativa para a desconstrução da matriz colonial que esteve na base da organização econômica inclusive dos governos progressistas das últimas duas décadas na América Latina, com a ênfase no extrativismo que ameaça justamente os povos indígenas e as suas terras.
O próprio presidente do Equador, Rafael Correa, em um debate sobre a Lei da Mineração daquele pais, afirmou: “A mineração é fundamental para a era moderna. Sem ela, regressamos à época das cavernas. Não podemos cair na irresponsabilidade de ser mendigos sentados sobre um saco de ouro.” (1)
Esta declaração reflete uma concepção de desenvolvimento que esteve na base da grande maioria dos governos de esquerda e mesmo socialistas, a qual prioriza o desenvolvimento das forças produtivas como geradora de bem estar social, mesmo que este desenvolvimento se reflita em uma ação predatória sobre a natureza e sobre comunidades e povos não integrados à este modelo.
O ecossocialismo que pautou a crítica não apenas ao capitalismo, como ao próprio socialismo não ecológico e à sua lógica também predatória da natureza, sempre foi relegado à um segundo plano dentro das organizações de esquerda, justamente pelo fetiche do desenvolvimentismo e a visão de Estado e economia que as caracteriza.
Michael Lowy, um dos maiores formuladores do ecossocialismo, foi bem claro sobre a necessidade de repensarmos o próprio modelo socialista, a partir do que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos denominou de epistemologias do sul: “As economias dos países do Sul, da Ásia, África e América latina devem se desenvolver, mas isto não significa copiar o modelo de desenvolvimento capitalista do ocidente e seu padrão de consumo insustentável. Trata-se de buscar um outro modelo, um desenvolvimento ecossocialista, baseado na agricultura orgânica dos camponeses e nas cooperativas agrárias, nos transportes coletivos, nas energias alternativas e na satisfação igualitária e democrática das necessidades sociais da grande maioria. O modelo ocidental não só é absurdo e irracional, mas não é generalizável: se os chineses quisessem imitar o american way of life, cinco planetas seriam necessários.” (2)
E é o próprio Löwy quem avança nesta relação entre ecossocialismo e bem viver como princípios para um outro mundo possível, ao citar uma afirmação do histórico líder indígena peruano Hugo Blanco de que “os indígenas já praticam o ecossocialismo há séculos”
E esse ecossocialismo dos indígenas nada mais é do que o bem viver, que tem como principais características justamente a harmonia com a natureza, reciprocidade, relacionalidade, complementaridade e solidariedade entre indivíduos e comunidades, oposição ao conceito de acumulação perpétua e regresso a valores de uso.
O bem viver envolve, pois, uma reflexão necessária sobre nossas visões de Estado e economia, ao defender a construção de um Estado plurinacional, comunitário e autonômico, tal como proposto nas recentes constituições equatoriana e boliviana, mas também se contrapor à visão de desenvolvimento e introduzir um debate que tem sido feito também na Europa sobre o decrescimento econômico.
Segundo Alberto Acosta: “A proposta de um novo estado deve incorporar dois elementos-chave: o Bem Viver e os Direitos da Natureza, a partir dos quais devem se consolidar e ampliar os direitos coletivos ou comunitários. Não há contradição com a participação cidadã, pois não se trata de uma democracia que abra as portas unicamente à cidadania individual-liberal: há também cidadanias coletivas e comunitárias. Além disso, os Direitos da natureza necessitam e, ao mesmo tempo, dão origem a outro tipo de cidadania, que se constrói no contexto ambiental.” (3)
Mas o bem viver também envolve outra visão de economia, sustentada em princípios como a solidariedade, sustentabilidade, reciprocidade, complementariedade, responsabilidade, integralidade e autossuficiência. Isso significa uma economia não baseada no produtivismo e consumismo exacerbados pelo capitalismo, cujo limite será a nossa sobrevivência como espécie.
A partir destas reflexões que envolvem não apenas a necessidade de transformação da nossa forma de produzir e consumir, mas principalmente da forma como nos relacionamos entre nós e com a Natureza como um todo, vemos com bons olhos o despertar de setores das nossas esquerdas para a afirmação do ecossocialismo e do bem viver como princípios para aquele outro mundo possível que tanto debatíamos nos Fóruns Sociais Mundiais.
E ficamos ainda mais otimistas ao vermos a crescente aproximação destes setores com os povos indígenas e suas lutas aqui no Brasil, cabendo destacar a experiência dos ecossocialistas do PSOL do grupo Ceará no Clima e do grupo que integro aqui no Rio Grande do Sul, da RAiZ – Movimento Cidadanista, um partido movimento em construção justamente com base nos princípios do ubuntu, bem viver e ecossocialismo.
Isso significa que entendemos que não se trata de entregar o Brasil para os índios, como uma experiência mágica ou uma tábua de salvação para as nossas muitas crises, mas de aprendermos e construirmos junto com os povos indígenas um novo projeto de país, democrático e generoso para com nossa gente.
(1) Acosta, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária. Elefante, 2016. Pg. 112
(2) Löwy, Michael. Entrevista ao site do Instituto Humanitas da UNISINOS. 2011.
(3) Acosta, Alberto. Ibid. pg. 157.
*Marcelo Sares é sociólogo e um dos fundadores da RAiZ – Movimento Cidadanista
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