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O que faz, afinal, parte da grande imprensa ser tão defensora do bem material ao atacar as práticas Black Bloc e ser tão racional e “equilibrada” quando patrimônio público é destruído numa capital brasileira como Belo Horizonte?
Por Rudá Ricci, no seu blogue
A prática Black Bloc foi amplamente julgada pela imprensa brasileira. O julgamento, aliás, parece dar o tom, nos últimos tempos, à linha editorial de parte dos nossos jornalões e revistas. Não cito rádios porque, com raras exceções, a linha editorial jornalística antecipou há anos o tiroteio geral que se lê, hoje, nas redes sociais. Seria chover no molhado.
A prática BB é conhecida. No livro de Francis Dupuis-Déri, publicado no Brasil pela editora Veneta, ficamos sabendo que sua origem foi o Autonomen, movimento autonomista dos anos 1980, sediado na Berlim Ocidental. Articulava marxismo, feminismo, ambientalismo e anarquismo. Aliás, embora seja uma prática que envolva maioria masculina, foi o movimento feminista europeu, que rejeitava profundamente a noção de representação e propunha a formação de coletivos e decisão consensual (pregando a independência em relação ao campo institucional), a fonte de orientação inicial do BB. Os primeiros confrontos ocorreram na Europa: Black Friday (contra a abertura de um depósito de lixo radioativo na Baixa Saxônia, em 1980), despejos em Berlim Oriental (1986), ocupações em Hamburgo e visita de Ronald Reagan à Berlim Ocidental em 1987.
Mas, evidentemente, não é a origem ou a história Black Bloc que atrai a população que os recrimina. É o ataque ao patrimônio público e privado. Os praticantes já disseram, à exaustão, que não atacam pessoas. Duas revistas tentaram criar confusão e desinformação alardeando campos de treinamento e financiamentos para disseminação do BB. As matérias caíram no profundo lago onde se encontra hibernando o monstro de Loch Ness.
O que choca a população é a destruição do patrimônio e, imagino, a provocação gratuita que gera a reação das polícias pouco afáveis. Com efeito, vidraças, paredes e equipamentos objetivam o trabalho humano, mesmo o alienado. Sua destruição não afeta a acumulação do capital. Os praticantes BB, entretanto, sustentam que se trata de uma performance política, tal como as ocupações lideradas pelo MST. O objetivo é chamar a atenção. Um marketing negativo que realmente atrai a atenção do grande público, mas, para a prática, não para a crítica às empresas.
Pois bem. O que dizer, então, de um prefeito que não se incomoda com a destruição do patrimônio público? Márcio Lacerda, prefeito de Belo Horizonte, já havia demonstrado dificuldade de relacionamento com a alteridade. Escuta democrática não parece ser um dom que tenha cultivado ao longo de sua vida. É verdade que dom é um toque de Deus. Mas não sei se um olha para o Outro. O fato é que é da autoria do alcaide belo-horizontino frases antológicas como “a culpa dos ônibus lotados é do povo que não tem paciência para esperar vir um vazio”, ou “então deveríamos ter sido mais babá do cidadão” (a respeito das enchentes causadas pelas obras na Avenida Cristiano Machado) ou “respeito sua opinião, mas ela é descartável” (durante discussões no ano passado, a respeito do preço das passagens de ônibus).
Das frases à ação. No dia 30 de junho, um ônibus do BRT/Move pegou fogo na pista exclusiva do sistema, próximo ao Bairro Planalto, na Região de Norte de Belo Horizonte. Sete passageiros conseguiram sair ilesos e a cândida e lacônica informação é que se tratava de problema mecânico.
Já havia críticas à pressa e falta de informações sobre as obras de mobilidade que a prefeitura de Belo Horizonte gerenciava na preparação da Copa do Mundo.
Até que, no dia 3 de julho, o Viaduto Guararapes, na Região da Pampulha, desaba, matando duas pessoas e ferindo mais de dez. O vice-presidente do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia de Minas Gerais (Ibape-MG), Clémenceau Saliba, sustenta que a falha na execução da obra é evidente e se deve à pressa em fazer as intervenções. Já o presidente Ibape-MG, Frederico Correia Lima, explicou que a pilastra, de sete metros, era sustentada por dez estacas de concreto de 22 metros – cinco de cada lado –, fincadas no solo e aventou a causa do acidente ter sido motivado por problemas na fundação, solo não compatível com o projeto ou perda de atrito das estacas. Algo inadmissível numa capital da 7ª Potência Econômica do planeta.
Em entrevista coletiva, o prefeito de Belo Horizonte voltou a ser sincero e desfechou: “acidentes como este acontecem". Imediatamente, recordei da postura de Rudolph Giuliani durante a tragédia de 11 de setembro que abalou a cidade que governava. O então prefeito de Nova York varou a noite em vigília com os familiares das vítimas que aguardavam notícias de seus entes queridos, compareceu ao enterro de cada pessoa morta em serviço na cidade e comandou, pessoalmente, cada ação de reconstrução da confiança dos cidadãos nas autoridades públicas. Um republicano, conservador, de quem se espera mais frieza administrativa que de um socialista.
Fico imaginando se não se trata de uma filosofia muito mais nociva que a Black Bloc, esta indiferença com a destruição de um patrimônio público que ceifou a vida de dois trabalhadores da cidade que é governada por alguém que considera que tragédias como esta acontecem.
O jogo do Brasil contra a Colômbia transcorria e eu me deixava levar para esquecer, por algumas horas, esta ausência de alma daquele que governa a cidade onde resido. Para os que professam uma religião, esta ausência de alma e humanidade transtorna ainda mais, mas imagino que não seja diferente para ateus humanistas (até mesmo os existencialistas, como ensinou Sartre). Até que Zuñiga decide atropelar a coluna de Neymar. O juiz não deu cartão. O jogo transcorreu normalmente. Uma frieza técnica que não condiz com a ética. Lembro-me de uma história envolvendo Garrincha, num jogo amistoso na Europa, que inaugurou um ato que redefiniu os limites da disputa no futebol. Percebendo um jogador adversário se contorcendo no gramado, jogou a bola pela lateral para que seu oponente fosse atendido. O estádio, em pé, aplaudiu por vários minutos o gesto de Garrincha, nossa estrela solitária.
O que faz, afinal, parte da grande imprensa ser tão defensora do bem material ao atacar as práticas Black Bloc e ser tão racional e “equilibrada” quando patrimônio público é destruído numa capital brasileira? Qual o critério para passar do sensacionalismo emocional do ataque BB ou a morte do jornalista da Band no início deste ano (durante um dos tantos protestos no Rio de Janeiro) e se escudar no profissionalismo anódino para cobrir uma tragédia que matou duas pessoas ou a irresponsabilidade de um jogador que fratura a vértebra de seu adversário? Interesses comerciais? Interesses políticos? Pode ser. Mas avalio que há algo mais grave. Desumanização. Os valores parecem contar pouco. A ideia de espécie parece conter o riso de quem a considera ingênua num mundo que se devora.
A grande imprensa vem perdendo sua capacidade de formar opinião de massas nestes primeiros anos deste novo século. Quando me deparo com algumas das reações de parte da imprensa, não tenho como conter o sentimento de alívio. Não há ainda algo que substitua o nobre papel que um dia ela desempenhou. Mas diminuir a proliferação da frieza calculista e utilitarista já é um ganho para a humanidade.
Foto de capa: (Flickr.com/nofutureface)