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A lógica é simples, mas perturbadora para os donos do poder, que compactaram sua estrutura de privilégios em torno a esse maltrato. O sujeito-consumidor também quer ser sujeito-político. Quer direito ao mercado, mas também à vida
Por Esther Solano Gallego*
Movimento dos Trabalhadores sem Teto. Professores da rede pública. Coletivos contra a Copa. Ontem São Paulo teve suas ruas ocupadas, e não de carros como de costume. De cidadãos. A onda que começou em junho como a catarse coletiva da classe média, da classe branca, transformou-se. O que vimos ontem tomando posse do território urbano era uma sociedade civil muito mais organizada, com maior conteúdo político. Cada grupo com seus cansaços, querendo dar voz a suas decepções. Um espaço de polifonias com um tom, grave, comum, se escutando por baixo, o da repulsa. Se os protestos foram ou não “fracos”, não é um assunto de matemática. O número não explica. Sãos as repulsas e os cansaços os que explicam, e esses, eu jamais os classificaria como “fracos”.
“A situação está impossível. As pessoas não suportam mais. Chegamos a um limite. Sim, o país melhorou sua renda. Sim, sim, a economia melhorou mas, e o trato ao cidadão? E a dignidade? E as mortes na periferia? Tem muito maltrato ao cidadão”. Um jovem me disse essa frase um dia, numa das tantas manifestações que já acompanhei. A lógica é simples, mas perturbadora para os donos do poder, que compactaram sua estrutura de privilégios em torno a esse maltrato. O sujeito-consumidor também quer ser sujeito-político. Quer direito ao mercado, mas também à vida.
Talvez o conceito de gueto sobre o qual se pensou e urbanizou este país, não funcione mais. Sua estrutura social, de hierarquias e barreiras, tão ridiculamente vertical, se desgasta. Linchamentos, greve de policiais militares, ônibus depredados cotidianamente, protestos tensos que acabam em cenas de violência...São alguns dos sintomas de que, de fato, chegamos a um limite, de que alguns cansaços chegaram a um limite.
Sinceramente, o que aconteça dentro dos estádios pouco me interessa. Esta Copa está sendo jogada fora deles. A vitória ou a derrota não virá dos gramados mas do asfalto. Vitória se os soberanos de Brasília decidem dar respostas a uma cidadania que está se expressando de forma contundente e decisiva. Derrota se as estratégias eleitoreiras de sempre se impõem e tudo acaba em pequenas mudanças instaladas para assegurar a reprodução do mesmo.
Não é uma taça, é um país em jogo.
*Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Foto de capa: Mídia Ninja