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Militante revela a experiência de convívio com os zapatistas e compartilha o que viu e aprendeu na "escuelita" do EZLN
Por Andrea Ixchíu Hernández – Totonicapán, Guatemala, para o Ninja
Por uma semana, tive a oportunidade de aprender que a autonomia não se constrói somente lendo livros, mas trabalhando duro no dia a dia e transformando os maus hábitos que aprendi no sistema.
Pude conviver com famílias e com nossas guardiãs, todos membros do EZLN- Exército Zapatista de Liberação Nacional, que foram nossas mestras neste quarto ciclo do primeiro grau da "escuelita Zapatista", onde fui convidada.
Todos os dias, antes do sol nascer, as e os zapatistas rompem o dia, se antecipam. No Caracol de Morelia, fiquei hospedada na comunidade Moisés Gandhi. As manhãs são muito frias e o fogo é um imã que atrai as falas e consolida a união familiar.
Assim que começam as lições da Escuelita, me ensinam que tenho que estar preparada para encontrar qualquer situação. Das quatro horas da manhã em diante se vê, de um lado para outro, os zapatistas na moagem do milho, fazendo tortas, esquentando café. O trabalho no campo começa cedo.
Pude acompanhar o corte do café, o trabalho da coleta do milho e de grãos para a comida diária. Pude conhecer os cento e setenta e cinco animais coletivos que devem ser alimentados para que, com sua venda, a comunidade possa obter fundos para que seu projetos continuem vivos.
Os Zapatista constroem, cotidianamente, a prática do seu discurso. Quando se conversa, seja com as crianças ou com as pessoas mais velhas, todos possuem a clareza de que devemos modificar o sistema porque ele é perverso, oprime e gera sofrimento. Existe consciência coletiva, muita solidariedade e um profundo desejo de transformar a maneira de se fazer as coisas.Eles construíram sua autonomia educativa, econômica, política e de saúde, rejeitando o trabalho escravo, a opressão do consumo que vivemos nessa civilização e contra a coisificação da humanidade. No entanto, fundar uma escola, uma clínica médica, um laboratório de computação sem nada mais do ideias e palavras, não tem sido fácil. Como me indica Alexandra, minha guardiã, “nossos lombos estão rachados” para que todos e todas possam viver com dignidade. “Não mendigamos nada do mal governo”, diz minha guardiã com orgulho, “recebemos às vezes apoio solidários de companheiros de outros lugares mas todo o resto é do nosso trabalho”.
O lema “Tudo para todos, nada para nós” é tão profundamente enraizado nas práticas vivenciais das comunidades zapatistas que nem sequer podemos deixar um presente para nossas famílias, tudo que entra em uma comunidade se compartilha e o afeto se constrói sem vínculos de dependência. Assim, todo trabalho coletivo para a comercialização do café, gado, milho, galinhas ou fruto, corresponde a um preço justo cuja renda vai para os cofres públicos para construir escolas autônomas (sem correspondência nem incorporação aos programas de Educação Pública), de centros de saúdes locais e ainda o Banco Popular Autônomo Zapatista e o Banco Autônomo de Mulheres Zapatitas, bancos incomuns e anticapitalistas que servem para garantir empréstimos para as emergências, aliviando a precariedade da autosubsistência.
Da raiva digna à arte em rebelião, da revolta da memória e com resistência cultural, os Zapatistas gritam ao planeta que não permitirão jamais um mundo sem mulheres, crianças, idosos e sem os de baixo. Praticam a democracia participativa, e, ali, o povo comanda e o governo obedece: nas reuniões a opinião de todas e todos é importante. Ali, as autoridades mandam obedecendo e resolvem seus próprios conflitos dentro da própria comunidade.
Entre os Zapatistas se respira respeito e se vê construir um mundo onde cabem muitos mundos: compreendem o direito de não ser iguais: explicam que, a partir das nossas diferenças, mas, sobretudo, a partir dos nossos pontos de encontro, é que se deve construir uma nova sociedade.
Sua capacidade de humanizar a política e a sociedade para então humanizar a economia permite que possamos imaginar o futuro com mais esperança. No entanto, nos vinte anos de sua revolta, enfrentam desafios importantes: a criminalização do movimento, perseguições das e dos líderes por parte dos partidos políticos, e, bloqueio ao acesso de recursos que lhes permitem melhorar suas condições de vida.
Apesar de tudo isso, os zapatistas sorriem e constroem um mundo de paz, uma sociedade plural, sem armas, e, seguem fiéis ao lema: “ Viver pela pátria ou morrer pela liberdade”. Suas palavras foram estímulos que hoje agradeço com meu coração mais profundo. As escolinhas se espalharam, em quatro ocasiões, entre as pessoas do México e de diversas partes do mundo em cinco Caracóis, algo assim como regiões com municipios autônomos e comunidades auto-organizadas em três niveis políticos (local, municipal e da Junta da Boa Governança) que se desdobram a partir de um centro que se voltam concêntricamente, crescendo ao seu redor, lenta e constantemente: Oventic, Morelia, La Realidad , Roberto Barrios e La Garrucha. Nos Caracóis convivem povos tzeltales, tzotziles e tojolabales e há todo tipo de clima e de produção: do frio que protege o milho e a batata-doce até as áreas quentes do café e das mangas.
A vida religiosa é livre. A propaganda religiosa não é permitida uma vez que todos os cultos são respeitados.
Na comunidade de Moisés Gandhi, no municipio autônomo de Lucio Cabañas, no Caracol de Morelia, cheguei com professoras, estudantes e trabalhadores de todas as partes do mundo. De 2 a 8 de Janeiro, professoras e professores zapatistas fazendo pão ou mostrando a organização de sua vida coletiva, desde a pecuária em terras da comunidade, até a sembra do café, o funcionamento das escolas secundárias, as mudanças de atendimento na saúde, explicando nos tempos lentos da vida diária, o trabalho autônomo que o EZLN realiza nas suas comunidades há duas décadas.
Não se bebe álcool nos territórios autônomos e o consumo de drogas proibido. Contudo, ninguém vive esses limites como restricões, mas sim como práticas para incitar a violência, em particular a violência doméstica, que não é considerada um problema privado, mas coletivo.
Quatro livros chamados “Cuadernos de Texto de primer grado del curso de La libertad según l@s zapatistas” foram a leitura indispensável que realizamos durante os dias de aprendizagem: Governo Autónomo I e II, Participação das Mulheres no Governo Autônomo e Resistência Autônoma. Nestes livros aprendemos o que é um mal governo, quem são as autoridades que se autonomeiam para enfrentar as necessidades que toda comunidade possui, o que é resistência e o que é a vontade política de uma prática de superação da marginalização por gênero. Nossas guardiãs assim como as professoras e professores que responderam a nossas perguntas no último dia de aula nas salas de reunião de nossos Caracóis, responderam de maneira coordenada a todas as perguntas que fizemos sobre os temas tratados pelos livros e pela escola. As perguntas que não eram centradas nos temas da “escuelita”, desculpando-se, as rejeitaram.
Assim foi como a celebração dos vinte anos da revolta EZLN não comemorou seu levantamento em armas, muito menos a repercussão midiática de suas publicações, pois estávamos num espaço que abriu as possibilidades para a construção de uma nova dignidade. Uma dignidade rebelde.