Por Ricardo Musse
Esta matéria está na edição 124 da revista Fórum. Compre aqui
As recentes manifestações de rua que, de São Paulo e Porto Alegre, disseminaram-se pelas principais cidades do País, apesar da pluralidade de sua pauta de reivindicações, emitiram um recado claro e convergente: a insatisfação popular com o atual sistema político.
O descrédito em relação aos políticos e ao desempenho dos três poderes deriva de uma construção ideológica, mas também se assenta em uma situação efetiva. A mídia tradicional (jornais, rádio e televisão) criou uma imagem fantasiosa do agente político, associando-o invariavelmente à corrupção e à ausência de empenho e trabalho. Esse esforço coordenado atende a dois interesses principais: cacifar-se como instância primordial da cena pública e deslegitimar a vida política, abrindo caminho para soluções autoritárias.
Essa visão ganhou adeptos e repercussão, constituindo-se em um falso senso comum, em parte porque fornece uma explicação (ainda que simplória) a um sentimento objetivo. Há uma percepção generalizada de que as demandas dos diferentes grupos sociais não estão sendo atendidas pelas instâncias e organizações políticas, que os políticos tendem a agir como membros de um estamento fechado e estão mais sintonizados com os interesses dos financiadores de suas campanhas do que com as prioridades vocalizadas pela população.
O recurso às demonstrações massivas, à ação direta, emergiu como uma reação ao engessamento do sistema político, à integração dos quadros do PT (constituído conscientemente em uma alternativa à política tradicional) ao estamento, à paralisia decorrente das negociações típicas dos “governos de coalização”. A potência e a legitimidade das manifestações, o apoio e o entusiasmo popular que suscitaram, derivam diretamente dessa situação objetiva.
As pesquisas, feitas regularmente, sobre a credibilidade das instituições políticas mostram uma reviravolta impressionante. A avaliação positiva durante o último ano do governo Lula cedeu lugar a uma progressiva rejeição dessas instituições, modificação medida muito antes das manifestações das últimas semanas. Atribuo essa inversão à conjugação de dois fatores: à persistência da crise econômica iniciada em 2007 e à inflexão econômica ensaiada pelo governo de Dilma Rousseff.
A crise atingiu proporções mundiais, adquirindo feições mais agudas na Europa e no Oriente Médio, como comprovam os números do desemprego e a intensificação dos protestos. No Brasil, apesar das expectativas criadas pelo desempenho da economia no último ano do mandato de Lula, a crise afetou poderosamente a indústria. A principal medida encaminhada pelo governo para incentivar a produção industrial, a desvalorização cambial, gerou um incremento nos preços dos alimentos (no mundo globalizado, tornados commodities). Ampliou-se sobremaneira o caos urbano. A barbárie, inerente ao capitalismo, tornou-se cada dia mais presente no cotidiano das pessoas, rotinizando uma violência inaudita e estarrecedora. Intensificou-se o sofrimento individual e coletivo, sintomas visíveis na epidemia de depressão e no incremento do número de usuários e dependentes de drogas.
Diante da crise, o atual governo orientou a política econômica numa direção que se revelou inadequada e contraproducente. Alardeou metas superestimadas de crescimento (no momento em que até a China coloca o pé no freio). Para tentar cumpri-las, adotou uma série de medidas que apontam para uma tentativa de ressurreição do finado nacional-desenvolvimentismo, com seus subsídios diretos e indiretos para o grande capital. Resgatou até mesmo suas prioridades equivocadas, privilegiando a indústria automobilística, as grandes empreiteiras e adicionando aos monopólios oriundos da privatização dos serviços públicos novos monopólios privados impulsionados por créditos subsidiados do BNDES. Essa orientação, a disposição em atender prioritariamente à agenda da Fiesp, acirrou a disputa pelos fundos públicos.
Convém ressaltar que se trata de uma alteração profunda em relação à política incrementada pelo governo anterior. O motor do crescimento no período Lula foi a redução das desigualdades, uma dinâmica de ampliação contínua da renda e do crédito que alterou a escala do mercado interno. O atual governo seguiu o mantra entoado pelos jornalistas e economistas porta-vozes do “partido da indústria”. Segundo eles, o crédito atingiu seu limite e, por conseguinte, um novo ciclo de crescimento exigiria um aumento exponencial dos investimentos. Propõem assim tão somente que o dinheiro recolhido nos impostos retorne diretamente para o capital.
Nesse contexto, as passeatas que reivindicavam uma questão localizada, a revogação do aumento das tarifas de transporte público em São Paulo e Porto Alegre, passaram a simbolizar uma demanda mais geral. A truculência da PM, uma herança persistente da ditadura, redirecionou a luta para a defesa do direito constitucional de reunião. Conquistado o direito à livre manifestação, os protestos tornaram-se o palco por excelência do conflito distributivo, trazendo ao primeiro plano o enfrentamento entre as classes, embotado na década anterior.
A exigência de saúde, educação e transportes públicos gratuitos e de qualidade, a luta por direitos sociais, atestam a emergência de novos movimentos, resultante da desconfiança ante a capacidade do sistema político em fornecer – para além da retórica eleitoral – respostas a essas questões. Mas também confrontam dois modos bem distintos de utilização dos fundos públicos: o do atual modelo inspirado nas políticas do nacional-desenvolvimentismo e o do embrião do Estado de Bem-Estar Social, ensaiado nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva.
O esforço para impedir que as manifestações sejam dominadas por grupos organizados de direita e pelas pautas da mídia tradicional está forjando a sempre almejada frente das esquerdas. Tudo indica que a ação dessa frente irá se guiar pela compreensão de que as palavras de ordem e o sentimento das ruas estão em sintonia com suas demandas históricas. Se não titubearmos, a potência das manifestações tende a politizar cada vez mais a população, empurrando o País para a esquerda.