Assassinato nos porões da Ditadura Militar em 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog renasce a cada dia na nas palavras de cada jornalista que resiste à tentativa de Jair Bolsonaro (Sem partido) em reescrever no Brasil uma das páginas mais infelizes de sua história.
A cada palavra em defesa da democracia escrita ou falada por jornalistas, há no entanto uma série de ataques coordenados por Bolsonaro e pela milícia digital que comanda nas redes.
"Ao atacar de forma sistemática, e cada vez mais violenta, jornalistas e comunicadores de todos os tipos, o presidente não apenas fragiliza um dos pilares do sistema democrático, como ainda autoriza que seus apoiadores e simpatizantes façam o mesmo. É como se ele criasse um ambiente de permissividade a ataques a jornalistas e comunicadores e, mais do que isso, um ambiente em que há a certeza da impunidade, afinal o presidente está a todo instante atacando e ameaçando jornalistas, sem que as instituições reajam a isso da forma que deveriam reagir", disse à Fórum Giuliano Galli, coordenador da Área de Jornalismo e Liberdade de Expressão do Instituo Vladimir Herzog.
A instituição que preserva a memória de Vlado - nome de registro do jornalista, que nasceu em Osijek, no então reino da Iugoslávia, em 27 de junho de 1937 - lança nesta feira uma iniciativa que tem como objetivo é combater as violações à liberdade de expressão e acolher denúncias de ataques e de ameaças a jornalistas, comunicadoras e comunicadores em todo Brasil: a Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores.
Além de ser um canal específico para denúncia de ataques à liberdade de expressão sofridos por jornalistas e comunicadores, a rede pretende ainda servir como fonte de atualização e formação de jornalistas diante da guerra de narrativas criada pela ultradireita no novo ecossistema midiático, que se difere muito daquele em que Vlado militou durante a Ditadura.
"A crise nacional e internacional da desinformação passa também por uma necessidade de o jornalismo como um todo conhecer novas práticas, novos métodos, incorporar novos saberes, e a Rede pretender fazer isso também", afirma Galli.
A Rede Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores será lançada nesta terça-feira (31), às 19h30, no canal do Youtube do instituto com um debate entre as jornalistas Semayat Oliveira, co-fundadora e co-diretora do Nós, Mulheres da Periferia; Kátia Brasil, cofundadora e editora-executiva da Agência Amazônia Real; e Bianca Santana, diretora-executiva da Casa Sueli Carneiro - uma das mais importantes pensadoras e ativistas do Brasil - que recentemente ganhou uma ação contra Jair Bolsonaro após ser alvo de ataques do presidente.
Confira a entrevista de Giuliano Galli à Fórum
Fórum: O IVH fala em "institucionalização dos ataques à imprensa no país". Qual o papel de Bolsonaro e do chamado "gabinete do ódio" no levante contra jornalistas e profissionais de mídia?
Giuliano Galli: Acima de tudo, os ataques de Bolsonaro, seus familiares, ministros, correligionários e de todos que compõem o famigerado “gabinete do ódio” são ataques à democracia. E quando o presidente da República e as pessoas em sua volta atacam a democracia, temos um problema muito grave, que certamente já trazem e continuarão a trazer consequências negativas para o país que, neste momento, a gente não consegue sequer dimensionar. O que este grupo que está no poder não entende – e certamente não tem interesse nenhum em entender – é que a imprensa tem um papel vital para o bom funcionamento do regime democrático. Sem imprensa, não há democracia. Então ao atacar de forma sistemática, e cada vez mais violenta, jornalistas e comunicadores de todos os tipos, o presidente não apenas fragiliza um dos pilares do sistema democrático, como ainda autoriza que seus apoiadores e simpatizantes façam o mesmo. É como se ele criasse um ambiente de permissividade a ataques a jornalistas e comunicadores e, mais do que isso, um ambiente em que há a certeza da impunidade, afinal o presidente está a todo instante atacando e ameaçando jornalistas, sem que as instituições reajam a isso da forma que deveriam reagir. Esses elementos combinados resultam na situação atual do Brasil no que diz respeito à liberdade de expressão: um país em que ser jornalista ou comunicador é uma profissão de risco, como ataques generalizados, de diferentes naturezas, e que normalmente são sequer registrados pelo sistema de segurança pública, o que dirá serem investigados e punidos.
Mais de 35 anos depois de seu assassinato, Vlado continua sendo símbolo de resistência e, ao mesmo tempo, da repressão violenta da ditadura. Quais similaridades existem entre a ditadura que assassinou Vlado e a crescente tentativa de imposição de um estado autoritário por Bolsonaro?
Nos últimos anos, a partir da eleição de Bolsonaro, vários dos pilares da democracia foram sendo fragilizados e, paralelo a isso, passamos a conviver com iniciativas e declarações públicas que, de fato, sinalizam para essa tentativa de imposição de um Estado autoritário pelo presidente. Me parece, no entanto, que o fato mais relevante, que aproxima este governo da ditadura que vivemos entre 1964 e 1985, é o protagonismo dos militares na gestão pública. Várias das frentes mais importantes do Estado brasileiro são, atualmente, comandadas por militares, diversos deles na ativa, inclusive – e isso obviamente não é saudável para uma democracia, especialmente quando levamos em conta o perfil e o histórico de atuação dos militares brasileiros na gestão pública.
A institucionalização dos ataques aos jornalistas exigiu a institucionalização da defesa dos mesmos, como tem feito o IVH nessa iniciativa. O que a rede de proteção pretende acrescentar no trabalho dos jornalistas?
A Rede pretende preencher uma lacuna que existe na sociedade brasileira, que é se tornar um canal específico para denúncia de ataques à liberdade de expressão sofridos por jornalistas e comunicadores de todo o país. Não há muitas ferramentas desenvolvidas especificamente para este público, e as poucas que existem não funcionam bem, por diferentes motivos. A situação da liberdade de expressão no Brasil, que já é ruim segundo absolutamente todos os relatórios e levantamentos sobre o assunto, na verdade é muito pior, pois sabemos que há um índice de subnotificação extremamente elevado. Mas além disso, a Rede irá promover atividades de formação para jornalistas e comunicadores de todo o Brasil, para compartilhar as produções jornalísticas que são feitas ao redor do Brasil, em diferentes formatos, com diferentes condições, sob diferentes perspectivas, mas todas com muita relevância e utilidade. As inovações tecnológicas das últimas décadas revolucionaram as formas de se produzir e consumir jornalismo no Brasil e em todo o mundo. Isso, claro, gera uma série de problemas, mas gera também uma série de potencializadas que toda a comunidade jornalística precisa conhecer e refletir. A crise nacional e internacional da desinformação passa também por uma necessidade de o jornalismo como um todo conhecer novas práticas, novos métodos, incorporar novos saberes, e a Rede pretender fazer isso também.