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A internet, definitivamente, alterou a dinâmica da liberdade de expressão. Nesse cenário, a relação entre o humor e o discurso de ódio - características aparentemente antagônicas -, que já existia muito antes do mundo digital, ganhou uma grande dimensão, principalmente nas redes sociais. Há várias formas de se analisar esse fenômeno. A Fórum ouviu a opinião de três psicanalistas sobre quando o humor fomenta o ódio.
Para Ana Laura Prates Pacheco, psicanalista e autora de livros como “Feminilidade e experiência psicanalítica” (Agente Editora) e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia – A direção do tratamento na Psicanálise com crianças” (Editora Annablume), essa relação pode se estabelecer por ter sido provocada por um exercício de poder sobre uma pessoa, ou um grupo específico, geralmente em uma situação de vulnerabilidade em relação a quem está se divertindo com sua exposição.
“O humor, entretanto, é algo bem mais amplo, que diz respeito de modo muito geral, a um estado de ânimo. Do ponto de vista da Psicanálise, desde Freud, podemos diferenciar algumas situações que nos fazem rir, que parecem ser semelhantes e que, na realidade, são estruturalmente muito diferentes. Podemos dizer que o cômico opera pela via da identificação imaginária com o outro, ainda que pela estratégia da agressividade. É como se pudéssemos nos aliar ao nosso 'supereu' sádico e, ao invés de sofrermos com seu sadismo, rimos de nossa condição de submissão. O problema começa quando essa aliança sádica passa a ser um instrumento para o exercício de poder, humilhação e dominação. Nesse caso, rir do outro humilhado, ainda que para não entrar em contato com o próprio traço de fragilidade, passa a ser uma perigosa ferramenta de exercício de intolerância e ódio”, analisa Ana Laura.
[caption id="attachment_136999" align="alignnone" width="300"] Ana Laura: "Rir do outro humilhado é uma perigosa ferramenta de intolerância e ódio” - Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Carla Regina Françoia, psicanalista, professora universitária, mestre em História da Filosofia Moderna e Contemporânea e doutoranda em Filosofia da Psicanálise, lembra a questão da linguagem. “Aquele que fala, fala algo, e aquele que escuta, escuta outro algo. Mas me parece que o humor fomenta o ódio quanto mais a linguagem ou a piada estiver próxima de uma realidade que precisa ser encoberta. Quanto mais eu me aproximo de uma realidade que não pode ser reconhecida, o ódio vem com uma resposta violenta, com agressividade”.
Já na avaliação de Marta Relvas que, além de psicanalista, é neurocientista e autora de “Sob Comando do Cérebro”, “Neurociência e Educação” e “Fundamentos Biológicos da Educação”, todos pela WAK Editora, o humor é uma resposta emocional interpretada como um sentimento. O humor está relacionado ao comportamento psíquico, porém, o processo é desencadeado organicamente, pois tem uma influência bioquímica, biológica, psíquica e social.
“O ódio é um sentimento construído por meio de uma emoção de raiva. Com isso, gera um comportamento negativo aos padrões sociais. O cérebro e a mente humana realizam atividades de impulsos de defesas para sobreviver. O ódio é um sentimento de um sentir cognitivo, por conseguinte um estado de humor provocado por uma reação orgânica, a emoção (raiva, ira) desencadeada numa estrutura do cérebro denominada de sistema límbico, ou seja, um local inacessível da nossa consciência”, avalia.
Intolerância e politicamente correto
A intolerância e o chamado politicamente correto têm um peso muito grande nesse processo. Segundo Ana Laura, o amor e o ódio, bem como a ignorância, são definidos pela Psicanálise como paixões humanas. “Elas fazem parte de nossa constituição e estão mais próximas entre si do que gostaríamos de reconhecer. O problema começa quando não reconhecemos essa contradição e preferimos jogar no outro todo o mal, inclusive ou principalmente aquele que não queremos ver em nós mesmos. A raiz da intolerância está exatamente neste ponto, ou seja, a impossibilidade de lidar com a diferença, com aquilo que pode ser estranho por ser muito familiar. Em geral, se odeia no outro aquilo que não se pode aceitar em si mesmo. A criação do discurso do ódio, entretanto, envolve uma lógica do coletivo. Coloca-se essa paixão a serviço da dominação, ou pior, da eliminação daquele que se torna o inimigo”, reflete.
Carla acredita que o politicamente correto veio como uma forma necessária para trabalhar com situações que são bem importantes socialmente. “Por exemplo, a questão racial ou da população LGBT. As piadas, as falas, os nomes que foram dados durante muito tempo ‘denegriram’ a imagem desses grupos. O politicamente correto veio para dar conta disso. A própria palavra denegrir, no politicamente correto, não é mais bem vista. A questão toda está girando em torno da intolerância em qualquer situação. Enfim, o politicamente correto foi, a princípio, uma ideia muito importante, mas que se perdeu no meio do caminho porque se radicalizou”.
[caption id="attachment_137000" align="alignnone" width="234"] Carla: "O politicamente correto foi importante, mas se perdeu porque se radicalizou" - Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Já na opinião de Marta, o estado de humor (sentimento) negativo é provocado por uma reação orgânica de hormônios, adrenalina ou cortisol produzidos nas glândulas e lançados na corrente sanguínea. “Estes, quando produzidos e lançados, têm a tendência em gerar um fluxo de interpretação de sentimentos negativos no córtex pré-frontal, como o ódio. Quando se fala em politicamente correto significa um estado de humor que pode variar com o tipo de reação emocional experimentada pelo sujeito. Isso tem a ver com o controle inibitório e a flexibilidade cognitiva, escolhas e decisões”, afirma a neurocientista.
Respeito ou policiamento?
Ana Laura ressalta que é preciso reconhecer que o politicamente correto surgiu como uma reação de grupos de pessoas marginalizados e que se sentiam ofendidos por usos da linguagem que os privilegiados consideravam comum. “Nesse sentido, foi muito bem-vindo, e isso por duas razões: primeiro, é preciso sempre escutar o outro e se colocar em seu lugar. É possível que sua piada perca a graça se você se colocar no lugar de quem é o alvo. Segundo, porque o politicamente correto colocou na mesa a difícil questão dos limites do controle da linguagem e, mais especificamente, do humor”.
Para ela, é fácil demonizar o politicamente correto como uma camisa de força para a liberdade de expressão. “Mais difícil é interrogar com honestidade a série de paradoxos que ele nos apresenta. E talvez ainda mais difícil seja a pergunta que ele nos impõe: até que ponto estamos dispostos a ceder nossos privilégios para não ferir ou agredir o outro que se encontra em uma situação desfavorecida, seja por razões históricas, econômicas, políticas, sociais e, até mesmo biológicas? Se o discurso racista, por exemplo, criou a noção de raça, não deveríamos combatê-lo também pela via do discurso? Isso posto, é preciso reconhecer, entretanto, que a língua é indomável e sempre rebelde em relação à lei, à norma culta e, inclusive, ao politicamente correto”, acrescenta.
Empatia
Outro ponto a ser abordado é a dimensão transgressiva do humor e empatia. “Há certa disposição para rir das próprias mazelas. Esse estado de espírito é, frequentemente, o resultado de uma experiência psicanalítica bem-sucedida, e é um belo antídoto contra o mau humor crônico das piores neuroses. A rebeldia transgressiva do humor é espontânea e goza de uma liberdade criativa que implica em se deixar levar pelas inúmeras possibilidades que a linguagem nos oferece para tratar nossas mazelas. A capacidade de rir de si é realmente uma conquista inestimável, que implica num tratamento radical do próprio narcisismo. Militar em favor do politicamente incorreto como modo de tratamento do politicamente correto, portanto, é um grande equívoco. Do meu ponto de vista, não se trata de uma questão sentimental, como a noção de empatia – aliás, estranha à Psicanálise – faria supor, mas de uma posição subjetiva que apaga o outro em sua diferença radical”, opina Ana Laura.
Carla, por sua vez, acredita que a falta de empatia explica a ausência de ética que vem no chamado humor escrachado. “Aquele que vem para mostrar, de uma forma engraçada, o que está excluído, o que não tem direito, o que moralmente se entende como vergonhoso. Quando o humor vem para mostrar isso, não vem como uma forma de incluir, mas de revelar algo para se manter fora como, por exemplo, a sátira que se faz com as travestis, com os gays, as piadas que se faz sobre os negros. Isso é uma forma de mostrar uma cultura que se criou sobre essas pessoas para que elas se mantenham excluídas. O humor que fomenta o ódio às mulheres, aos negros à população LGBT traz consequências terríveis. Então, o humor tem esse papel antiético, quando é esse humor escrachado, que não leva em conta, minimamente, o politicamente correto, para que as pessoas se mantenham fora do convívio social”.
Na opinião de Marta, não nascemos empáticos, nos tornamos empáticos. “O cérebro humano tem neurônios especializados para desenvolver a empatia. É necessário termos um “filtro” das nossas reações emocionais para nos tornarmos menos impulsivos e ou agressivos. Empatia se exercita”.
[caption id="attachment_137001" align="alignnone" width="225"] Marta: "É necessário termos um “filtro” para nos tornarmos menos agressivos" - Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Redes sociais
Grande parte dos discursos de ódio, com a utilização do “humor” ou não, pode ser encontrado no universo digital, especialmente nas redes sociais, o que faz com que esse território seja constantemente acusado de servir de espaço para a nociva disseminação dessas práticas.
Na opinião de Ana Laura, as redes sociais são um fenômeno tão recente e complexo que ainda será necessário algum tempo para uma análise consistente e não moralista ou alarmista desse fenômeno. Algumas coisas, entretanto, podem ser ditas, segundo ela. “Como psicanalista, considero bastante ingênua a ideia de que, nas redes sociais, todo mundo é feliz, belo, tem as melhores férias, os filhos mais lindos, o casamento mais perfeito, etc. O mais constrangedor é perceber o que cada um escolhe para mentir. Aí aparece algo impossível de camuflar: a verdade mentirosa de cada um. Não há como disfarçar, por exemplo, se você verificou ou não a fonte da informação que compartilhou, depois que ela se revelou fake news”.
Outro aspecto relevante, ainda segundo Ana, é o anonimato. “Somos muito valentes quando não precisamos nos responsabilizar pelo que dizemos e pelas ofensas que fazemos. O fenômeno de grupo que Freud chamou de “psicologia das massas” pode ser hiperbolizado na internet, e isso é potencialmente bastante perigoso. Ainda não temos como prever o alcance dessa ameaça que pode, entretanto, criar uma nova forma de fascismo. Mas ainda acredito em uma frequência irônica, chistosa e bem-humorada nas redes sociais”, completa.
Carla acrescenta que as redes sociais têm produzido vários experts, autoridades em inúmeros assuntos que, sequer, existem. “Há um véu sobre as redes sociais, como se as pessoas não percebessem que por trás daquilo que está sendo falado, escrito ou divulgado há o olhar do outro. A pessoa se sente protegida, porque não está exposta publicamente ou pessoalmente. Ela está exposta virtualmente e como se isso fosse um véu de proteção. Portanto, ela pode fazer e falar qualquer coisa. Acredito que cada vez mais há a produção e a disseminação de vários discursos autoritários e a forma de se trabalhar isso é a partir de um cuidado na disseminação das notícias”, finaliza.
Marta ressalta que o principal argumento é a construção e o entendimento sobre o respeito e ética que precisa ser vivido e experimentado. “A questão não é apenas se colocar no lugar do outro. O fundamental é calçar o sapato do outro e tentar caminhar para, só assim, saber como o outro está, pois essa construção é subjetiva. Vivemos em um mundo de intolerâncias e a intolerância gera o discurso autoritário do poder, do transitório e da irracionalidade subjetiva. O humano precisa desenvolver a escuta emocional por meio da educação cognitiva, já que nascemos com uma biologia cerebral altamente complexa para o seu neurodesenvolvimento social e cultural. A questão é como usar”.