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Por Paulo Victor*
A Copa do Mundo de 2018 proporcionou inúmeras imagens bonitas e momentos emocionantes. Mas para mim todos os episódios foram superados pelas imagens da comemoração dos jogadores da França após a confirmação do título.
Entre todos os jogadores, pra mim se destacou a postura de Pogba. Dançou com colegas dentro do campo; gritou repetidamente no microfone que estava "louco, muito louco"; colocou sua mãe e irmãos para levantar a taça junto com ele; ajoelhou no gramado e levantou as mãos para o céu em sinal de agradecimento.
Aquelas imagens de Pogba me tocaram muito assim que as vi, ainda na noite de domingo. E me tocaram por um motivo muito simples, mas ao mesmo tempo muito profundo: porque eu me vi em Pogba.
Para um menino negro e de família pobre como eu fui, e como Pogba foi, o futebol é, muitas vezes, o caminho para transformar a nossa vida e das nossas famílias.
O outro caminho é o estudo. Mas quando você vem de uma família sem tradição acadêmica, quando você pode ser um dos primeiros ou o primeiro do seu núcleo familiar a cursar uma faculdade, depois um mestrado, um doutorado, etc., quando o trabalho - formal, informal ou ilegal - tenta te puxar com você ainda adolescente, isso é um caminho que em verdade parece um sonho muito distante.
Na real, muitas vezes o futebol é para os meninos negros o único espaço de socialização para além do ambiente familiar. Sim, porque em geral a escola não nos percebe, as igrejas não nos contemplam e os espaços culturais nos são inacessíveis. Essa é a regra.
Então, quando somos fortalecidos por aquilo que nos cabe, como é o futebol, ficamos igual a "pinto no lixo". Porque é aí que vemos perspectiva para a nossa vida e para a vida dos nossos.
É por isso que quando vi as fotos de Pogba eu me vi, lembrei de vários momentos da minha infância e adolescência.
Era assim: quatro pés de sandália viravam duas traves. Cada par era uma trave. Cada trave tinha a largura de uns "três pés". Bastavam 4 meninos. Dois de cada lado. E uma bola. Não existia goleiro.
Quando era perto de alguma data comemorativa (aniversário, Natal, Dia das Crianças), tinha chance da bola ser de couro, um presente. Quando não, era uma de plástico mesmo. Daquelas que com um chute pega cada efeito de fazer inveja aos melhores batedores de falta do mundo.
Havia também os jogos ("babas") mais completos. Com três ou quatro de "cada lado" e mais um goleiro pra cada. Esses eram no asfalto, na areia da praia ou numa quadra de cimento duro toda esburacada perto de casa.
Esses eram os melhores babas. Algumas vezes eram os amigos contra os amigos mesmo. Outras vezes eram os amigos contra os conhecidos de outra rua. Em alguns momentos arriscávamos uns campeonatos. Era tensão pura. Assunto das rodas de conversa durante semanas, antes, durante e depois dos jogos. Os jogos contra os "outros" eram "a pirão", valia quase tudo. Quando perdíamos uma partida, a tristeza coletiva batia pesado. Às vezes as lágrimas até caiam. Quando saíamos vitoriosos de um jogo, era abraço e sorrisos pra todo lado. E quando o título ficava com a gente? Ficávamos igual a Pogba. Iguaizinhos.
Agora, me diga: se ficávamos iguais a Pogba apenas por um campeonato de futebol no bairro, imagine como não ficaríamos ganhando uma Copa do Mundo? Ficávamos Pogba a décima potência.
Então, eu como um menino negro que fui como Pogba e encontrei o caminho do estudo porque também não tinha a mesma qualidade futebolística de Pogba, ler um escroto de um jornalista, um bosta de jornalista, um jornalista racista, escrever que Pogba reagiu como "um animal que escapa do cativeiro" dói demais. Dói muito. Mas transformamos a dor em luta.
E as vitórias dessas lutas transformamos em celebração, em dança, em festa. Como Pogba fez.
E Pogba fez porque a história dele o levou a isso. Quem não viveu tudo o que veio antes, não conseguirá entender. Nunca.
P.s.: Não vou compartilhar o texto do jornalista. Mas o nome do autor é Bruno Marinho.
Paulo Victor Melo é jornalista, negro, da Ribeira, bairro de Salvador. Atualmente vivendo em Aracaju. *