Em artigo, historiador explica a relação da ascensão de Bolsonaro com seu fascínio pelo "cu alheio" . Leia
Por Raphael Silva Fagundes*
Tudo parecia insípido, morno, quando alguém resolveu ser obsceno. O psicanalista argentino, Ariel C. Arango, entende o palavrão como uma palavra-tabu, obscena, que revela, “verdadeiramente, a vida sexual que não deve ser mostrada em público”.
1 Os palavrões são um caminho para o inconsciente, “filhos do medo, do espanto, do trauma”. São detonadores de lembranças e antigas paixões proibidas. Eles estão nas piadas “sujas”. E, partindo de Freud, Arango mostra que “a piada ‘suja’ é sempre uma forma de superar a proibição. Dizemos de brincadeira o que não podemos dizer a sério”.
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Isso explica o estilo do discurso político reacionário que ganhou fama. Donald Trump chama de “buracos de merda” países como El Salvador, Haiti, e diversas outras nações africanas.
3 Bolsonaro diz que usava o auxílio moradia para “comer gente”. O MBL mandou um pênis de borracha com a inscrição “check this” para uma organização jornalística que apura a veracidade das informações. O que isso nos leva a pensar?
Acredito que há nessas atitudes um jogo de opressões. A obscenidade oprimida pela moral burguesa é usada como estratégia retórica para a defesa de outras opressões. Falar de tortura, que alguém deve morrer, ou que alguém é inferior, é algo inconcebível na sociedade atual. Dizem que foi o politicamente correto que configurou a realidade desse jeito. Mas eu acredito que isso não passa de uma fase do nosso processo civilizador. No entanto, a questão é que ao se alvitrar a libertação expressiva do palavrão, ao usar nos argumentos termos oprimidos por esse mesmo processo civilizador, promove-se uma atração de indivíduos encantados pelo poder mágico que as palavras proibidas – por serem obscenas – carregam, tal como o feitiço lançado pela planta carnívora ao seduzir sua presa para o abate.
As pessoas veem ousadia, coragem e sinceridade quando alguém vem à público dar entrevista em um jornal de grande circulação e diz: “Entra na minha casa, estupra a minha mulher, fode a minha filha, e eu tenho que bater palmas para a liberdade de expressão”
4, disse Bolsonaro em uma entrevista para a Folha de S. Paulo quando questionado sobre o porte de armas. Libertar palavras oprimidas, como os palavrões, para menosprezar a liberdade de expressão foi uma estratégia formidável. A opressão se torna atrativa quando ela é defendida por meio de palavras oprimidas e reconhecidas como tais por todos.
O meio é a mensagem
Não se pode entender um discurso sem compreender o meio pelo qual ele trafega. Bolsonaro usa da estética da zoeira para falar de coisas sérias, exatamente como a obscenidade linguística é permitida em nossa sociedade. O programa "Pânico na TV" foi um grande meio pelo qual o deputado conseguiu seus seguidores. Jovens no zênite do desejo sexual vislumbram-se com as bundas e piadas impúdicas que deles arrancam risadas.“O riso em questões eróticas é por isso ambíguo. Muitas vezes, é só um respiro, um momentâneo escape da opressão”, escreve Ariel Arango. O meio é a mensagem, e independente do que se falava, a garotada absorvia a ideologia defendida pelo político conservador, através do gozo e da excitação vendida pelo sósia de Bolsonaro encarnado na tela entre mulheres seminuas.
A questão é dizer o que não pode ser dito através daquilo que não se pode dizer (“O dizer e o dito” de Oswald Ducrot). É defender a opressão ao imigrante, à liberdade de expressão, ao negro, à mulher etc. através de palavras oprimidas, os palavrões. As coisas passam a parecer o que elas não são. Acaba-se defendendo algo contrário a si mesmo, como as privatizações, o fim da liberdade de expressão etc., enfim, caminha-se sorridente rumo ao abismo,como os insetos seduzidos pelos odores liberados pela planta carnívora,ávida para devorá-los impetuosamente.
Os palavrões exalam um discurso verdadeiro sobre a sexualidade de qualquer um. Despertam o prazer sexual trazendo à tona o próprio ato de forma lasciva, excitante, como dizia Ovídio em sua Ars amatoria, escrita no século II a. C.. Tornam muito mais presente os orifícios e órgãos sexuais que as palavras técnicas mencionadas pelos especialistas, como pênis, vagina ou ânus. Desta maneira, há um desvio do conteúdo da fala, estupidificante. E a retórica é o desvio, a maneira não convencional de dizer. Assim, o discurso depravado torna-se retórico. A que ponto chegamos!
Ninguém vota em Bolsonaro pelo fato de ele não ser (supostamente) corrupto, mas por ser, com as palavras, despudorado, dissoluto, airado, consequentemente cômico, engraçado, zoeira... Há outros políticos que não estão envolvidos em corrupção que, inclusive, como no caso do deputado estadual Marcelo Freixo, lutam contra a corrupção (coisa que Bolsonaro não se dispõe a fazer), mas preferem não ser obscenos, mantendo o que chamamos de decoro.
A fascinação pelo cu alheio
Falando em decoro, quem não se lembra das frases de Bolsonaro contra os militantes dos Direitos humanos: “Seu pai deu o cu, vai dar o cu...”?
5 E sua perseguição ao deputado federal Jean Wyllys, que, por seu turno, assegura que o pré-candidato à presidência da República, vem apelidando-o de “cu ambulante”, “queima rosca”, “deputado que ama o aparelho excretor”?
6 De onde vem essa cisma pelo cu?
Os homens da Somália escolhem as mulheres pondo-as em fila e ficando com a que possui as maiores nádegas. Na Grécia Antiga, existia “a deusa das nádegas”, Vênus Callipyge. Bater na bunda sempre foi uma forma de castigo e muitos instrumentos de tortura têm o formato fálico que fere a vítima que sofre a punição de costas. Mas desde os tempos antigos, destaca o nosso psicanalista, a submissão anal era uma forma de “feminizar o homem derrotado ou preso”
7, transformá-lo em mulher, gênero historicamente inferiorizado no mundo Ocidental. Ou seja, a violação anal era uma forma de humilhação. Encher o cu do negro de pólvora e explodir era comum no Haiti, assim como empalar os derrotados de guerra na Europa.
Portanto, essa forma histórica de sexualizar o conflito persiste até hoje quando o ódio sobe as nossas cabeças e nos faz soltar um “vai tomar no cu”. Por outro lado, o desejo de ser dominante, superior a um indivíduo que tem sua relação sexual por meio de tal orifício erógeno, trás de volta o furor de humilhar e interiorizar alguém por causa disso. Daí vem a fascinação de Bolsonaro por Jean Wyllys. Vale lembrar que a palavra “fascínio” vem de fascinus, palavra latina para pênis ereto.
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Conclusão
O adolescente reprimido em casa e por seus professores para não falar palavras obscenas, vivem como um dos pacientes de Freud que passou a infância obcecado por saber se Cristo tinha cu e se ele também cagava. Assim, quando uma pessoa pública fala o que todos tem vontade de falar (no sentido obsceno), logo se torna mito, como o espírito santo que se tornou homem.
A questão do palavreado é tão retórica que, na prática, esses mesmos conservadores agem em defesa da moral cristã, punindo exposições eróticas e a nudez artística.
Ainda não houve a superação, por parte de alguns indivíduos, dos nossos atos primitivos. Aliás, o pensamento conservador os recupera porque sabe que estão escondidos em algum lugar de nosso inconsciente. São fortes ingredientes para atrair uma juventude rebelde que vê menos opressão na tortura que no direito de falar palavrão. Pessoas que dão a mínima para a política, para a vida em comunidade, mas que encontram em qualquer situação sexualizante um motivo para escapar da vida real atribulada.
*Raphael Silva Fagundes é Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí
Foto: Wilson Dias/ABr