Luciano Martins Costa: A ‘barriga’ intencional da ‘Folha’

Nenhum cuidado primário foi tomado pela redação da Folha de S.Paulo, na quinta-feira (25/6), ao noticiar, em sua edição digital, que o ex-presidente Lula da Silva havia ingressado com pedido de habeas corpus preventivo, na Justiça do Paraná, para não ser preso como acusado na Operação Lava-Jato (...) Foi mais do que incompetência: foi resultado de um empenho do jornal em criminalizar o ex-presidente da República, no rastro de um processo que começa a incomodar alguns dos mais renomados juristas do país, por uma sucessão de decisões tidas como arbitrárias

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Nenhum cuidado primário foi tomado pela redação da Folha de S.Paulo, na quinta-feira (25/6), ao noticiar, em sua edição digital, que o ex-presidente Lula da Silva havia ingressado com pedido de habeas corpus preventivo, na Justiça do Paraná, para não ser preso como acusado na Operação Lava-Jato (...) Foi mais do que incompetência: foi resultado de um empenho do jornal em criminalizar o ex-presidente da República, no rastro de um processo que começa a incomodar alguns dos mais renomados juristas do país, por uma sucessão de decisões tidas como arbitrárias Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa 

Uma das grandes preocupações de teóricos do jornalismo após a criação da internet era o conflito potencial entre a ambição da notícia exclusiva e a nova realidade da mídia universal. Como conseguir um “furo” jornalístico se qualquer um que tiver acesso à rede mundial de computadores pode dar uma notícia em primeira mão?

Esse fantasma se materializou com o predomínio das redes sociais e o avanço dos telefones celulares.

O “furo” jornalístico é um troféu valioso demais para ser colocado em risco por um desmentido imediato na rede global de comunicação. Por outro lado, uma informação incorreta pode afetar a credibilidade de um veículo de comunicação, ainda com mais gravidade se ela se espalhar o suficiente para influenciar um grande número de pessoas antes de ser revelada como fraude.

Por isso, as redações dos melhores jornais do mundo investiram em três recursos para minimizar o risco das “barrigadas” – os “furos” falsos.

O primeiro recurso é contar sempre, entre os editores, com profissionais experientes, capazes de contextualizar qualquer notícia e questionar sua verossimilhança. Entre meados dos anos 1980 e o final dos 90, por exemplo, O Estado de S. Paulo tinha uma equipe de editores executivos que praticavam nas reuniões da primeira página o que se chamou de “dessacralização da notícia” – ou seja, cada editor especialista era desafiado a fundamentar a pauta que oferecia como destaque, em linguagem que pudesse ser entendida por um leigo.

O segundo recurso, e igualmente eficaz, é contar com um planejamento da pauta e processos de seleção de prioridades que mantenham a equipe em alerta para pontos obscuros em informações primárias.

O terceiro, e mais importante, é a própria alma do jornalismo: a dúvida. Ela se resume na pergunta desconfiada: “E se…?”

Evidentemente, ninguém vai esperar, por exemplo, os atestados de óbito, para afirmar que os passageiros de um avião que explodiu estão todos mortos, mas ainda assim a praxe é esperar por uma informação oficial para fazer essa afirmação.

E se, contra todas as probabilidades, for encontrado um sobrevivente?

Sem querer, querendo

Nenhum desses cuidados primários foi tomado pela redação da Folha de S.Paulo, na quinta-feira (25/6), ao noticiar, em sua edição digital, que o ex-presidente Lula da Silva havia ingressado com pedido de habeas corpus preventivo, na Justiça do Paraná, para não ser preso como acusado na Operação Lava-Jato.

A notícia original foi publicada às 11h25. Cinco minutos depois, uma nota colocada apressadamente dizia: “Erramos – Não foi Lula que pediu habeas corpus preventivo; ação foi de consultor sem ligação com o ex-presidente”.

A pequena nota corretiva foi substituída muito tempo depois, às 15h07, por outro “Erramos”, que informava: “Versão anterior da reportagem ‘Habeas corpus preventivo pede que Lula não seja preso na Lava Jato’ informou incorretamente que o pedido de habeas corpus havia sido feito pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva” (ver aqui).

O título, o texto e a chamada na home page do portal foram corrigidos, mas a versão original já corria pelas redes sociais, impulsionada por uma equipe a serviço do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO).

Mesmo com os sucessivos atentados ao bom jornalismo que fazem a rotina da imprensa brasileira, difícil acreditar que a redação da Folha de S. Paulo tenha cometido um mero erro técnico, uma “barrigada”.

Foi mais do que incompetência: foi resultado de um empenho do jornal em criminalizar o ex-presidente da República, no rastro de um processo que começa a incomodar alguns dos mais renomados juristas do país, por uma sucessão de decisões tidas como arbitrárias.

O viés condenatório da Folha pode ser percebido na versão atualizada às 15h32 de quinta-feira, na qual se lê que “segundo o Instituto Lula, qualquer cidadão pode impetrar o habeas corpus”. O correto e honesto seria dizer, simplesmente, que “o pedido de habeas corpus pode ser feito em nome de terceiros por qualquer cidadão”, como saiu na edição de papel na sexta-feira (26/6) – porque essa é a norma legal, não a “opinião” do Instituto Lula.

As trapalhadas que se seguiram apenas aumentaram a repercussão da notícia – e para muitos cidadãos fica a impressão de que Lula da Silva está na iminência de ser colocado na cadeia – o que não é verdade, porque ele nem sequer é investigado.

Os outros jornais alimentam essa versão ao publicar textos ambíguos – por exemplo, o Estado de S. Paulo diz que Lula “nega que seja o autor do pedido” – frase que não se justifica depois que o impetrante do habeas corpus admitiu ter agido por conta própria.

O episódio dá razão aos impertinentes que chamam aquele jornal de “Falha de S. Paulo”.