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A imprensa é refém de suas fontes, em parte porque não consegue captar e dar um significado à complexidade da vida contemporânea; em parte, porque também aderiu ao espetáculo midiático
Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
O ex-piloto de Fórmula 1 Michael Schumacher não é o herói que a imprensa pintou na última semana. Ele se encontra hospitalizado em estado grave, após sofrer um acidente na estância de esqui de Méribel, nos Alpes Franceses, porque resolveu sair da pista regular e descer por uma área não delimitada, acabando por cair e bater a cabeça em uma pedra.
Nos últimos dias, os jornais e os noticiários do rádio e da televisão repetiram seguidamente que o ex-campeão de automobilismo se acidentou ao tentar socorrer a filha de um amigo, que teria sofrido uma queda. Na quinta-feira (9/1), os jornais brasileiros reproduzem informações de autoridades francesas que investigam o acidente e contam outra versão, com base nas imagens gravadas por uma câmera acoplada ao capacete de Schumacher: ele saiu da pista oficial porque quis, e não há registro de nenhuma outra pessoa na área onde se acidentou.
A história mentirosa foi passada aos jornalistas pela assessora de imprensa do ex-piloto, Sabine Kehm, e comprada pelo valor de face por agências internacionais de informações, emissoras de televisão, jornais e revistas de todo o mundo.
[caption id="attachment_39421" align="alignleft" width="350"] Se é possível enganar a mídia do mundo com uma história desmentida pelas imagens gravadas pelo próprio Schumacher, o que não fazem as poderosas agências de relações públicas? (Foto Wikimedia Commons)[/caption]
O episódio coloca duas questões interessantes para a análise da mídia. A primeira é a preocupante ascendência de assessores de comunicação sobre a imprensa. A segunda é ainda mais instigante e se refere ao processo avassalador de espetacularização das notícias: no universo hipermediado, a disputa por imagens e dados cada vez mais chocantes produz um contexto no qual a verdade perde espaço para as versões mais eletrizantes.
Nesse caso, qual seria o valor real da informação mediada pela imprensa?
Com a redução do tempo para processamento das informações, somada à necessidade de decidir rapidamente sobre o que é e o que não é notícia, a mídia se coloca num campo tão inseguro quanto o local escolhido por Schumacher para deslizar em cima de um par de pranchas.
Na disputa pela primazia de “furar” a concorrência, os editores optam por divulgar como verdadeiro tudo de interessante que lhes chega às mãos. No caso da história supostamente inventada pela assessoria do ex-piloto de corrida, não havia muito como checar a veracidade da informação, uma vez que Schumacher segue em estado de coma e os repórteres postados em frente ao hospital têm que ser criativos para cumprir suas cotas de relatos diariamente.
Imprensa manipulada
Segundo reportagem distribuída pela Associated Press (ver aqui, em inglês), especialistas afirmam que muitos atletas profissionais e amadores, com câmeras acopladas em seus equipamentos, tendem a priorizar as imagens de seu próprio desempenho, em detrimento da segurança.
Michael Schumacher não é um herói da compaixão e da solidariedade: é um esportista extremamente egoísta e competitivo, viciado em adrenalina, que depois de se aposentar no automobilismo seguiu arriscando a vida em esportes radicais. A câmera em seu capacete foi provavelmente uma das causas de seu acidente.
Não há como ignorar que o episódio revela mais uma vez a fragilidade do sistema da imprensa. Se é possível enganar praticamente toda a mídia do mundo com uma história que seria desmentida com a revelação das imagens gravadas pelo próprio Schumacher, o que não devem estar fazendo as poderosas agências de relações públicas, muitas das quais são associadas a grupos de publicidade, para moldar na opinião do público a reputação de empresas, celebridades, investidores, políticos e bancos?
Aqui no Brasil, onde as redações encolhem e diminui progressivamente a capacidade do sistema da mídia de captar e processar notícias, a maioria dos veículos depende cada vez mais das pautas criadas por assessores de comunicação. No caso do noticiário político, por exemplo, não há como acreditar em critérios objetivos da imprensa ao processar os produtos dos marqueteiros, uma vez que as disputas eleitorais invadiram o cotidiano do jornalismo e se transformaram em pauta permanente. A mesma coisa se pode afirmar do noticiário econômico, claramente atrelado aos interesses político-partidários e condicionado pelos dogmas do mercado.
A imprensa é refém de suas fontes, em parte porque não tem mais capacidade, com seu sistema vertical e linear de processamento, de captar e dar um significado à complexidade da vida contemporânea; em parte, porque também aderiu ao espetáculo midiático, no qual o jornalismo se mistura a todo tipo de interesse particular ou setorial.
O jornalismo tradicional está descendo a ladeira, com uma câmera no capacete.