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Em pleno século XXI, quando se discutem novas configurações familiares e de parentesco, impressiona a exibição de um programa que transmite uma ideia pra lá de arcaica: o destino domiciliar compulsório às mulheres
Por Marcelo Hailer*
Estreou neste último domingo, (7/4), o quadro “Mundo Sem Mulheres”, que será exibido no programa “Fantástico”. Em uma aparente estética e edição modernas, o que se viu no primeiro episódio nada mais foi do que a reedição de todos os códigos masculinistas que constroem a figura das “mulheres” há séculos, ou, melhor dizendo, desde a configuração do lar grego: a pólis aos machos viris, ao lar as fêmeas sensíveis e retraídas.
Na apresentação do quadro no programa, a jornalista Renata Ceribelli introduz: “elas partiram de férias, por uma semana, mas, é claro, com o coração na mão”, pois, onde já se viu “mulher” deixar a casa para o macho do lar cuidar durante sete dias!
E, na sequência, nada mais clichê e direcionado: os machos alfas com o seu reino livre das mulheres fizeram... Churrasco, festa e tomaram cerveja! Aquele ser abjeto (desumanizado e invisível), a “mulher”, que coloca limites e é a “verdadeira chefa” do lar está fora... E a jornalista acaba com a festa: “mas logo os maridos caíram em si, pois um mundo sem mulheres não é para amadores”, ou seja, o reduto da cozinha, da panela, da fralda cagada é das profissionais donas de casa, é dá “mulher”, objeto desde sempre construído a partir do prisma masculinista, viril e reprodutor.
Após deixarem a casa, a narração do programa avisa: “as mulheres, mães e donas de casa vão curtir as regalias...” Claro, onde já se viu mulher ficar no spa e homem cuidar do lar? E, posteriormente, a grande pergunta: como viver e sobreviver num mundo sem mulheres? Aí, pra coisa não ficar tão feia, o programa relaxa a partir do seu narrador, o ator Alexandre Borges: “muitas mulheres nunca tinham ficado longe de seus maridos e filhos, será que elas sabem descansar?”, ou seja, nenhuma “mulher” pode descansar e ser “feliz” fora do reduto doméstico.
Faz-se necessário destacar o recorte social feito pelo programa: trata-se de “mulheres” e “homens” moradores do Parque Leopoldina, no Bangu, região popular do estado do Rio de Janeiro... É claro, “mulheres” ricas não trabalham, não cuidam do lar, não cuidam dos seus filhos e os machos alfas ricos também não fazem nada, apenas tomam uísque e saem com prostitutas. Pedagogia domiciliar transada com biocapitalismo de classe.
Aí é que devemos perguntar: homens e mulheres existem? Do que se trata esse recorte de gênero sob essas duas espécies que foram nomeadas medicinalmente a parte de suas genitálias? Novamente, existem ou não? Ou tudo não passa de uma construção patriarcal que é também trabalhada pelos dispositivos da Indústria Cultural, como este programa?
O campo de batalha
Sim, tudo pode ficar pior: pra aliviar o estresse das “mulheres” longe do habitat “natural”, o lar, o programa as leva para um campo de paintball. Mas, é claro, nada como uma atividade entendida como masculina para “domesticar” estas mulheres fora de seus lares. O narrador, excitado, avisa: “Esporte de combate”. O que o programa pretende deixar claro com isso? Mulheres, não reclamem se o destino de vocês é o lar e a maternidade, pois, quando o macho alfa está fora do seu reino, está combatendo na rua.
Enquanto as “mulheres” combatem, o vídeo mostra um dos machos alfas sem controle algum sobre as crianças que se revoltam frente à péssima comida que ele as oferece. Mais uma vez, de maneira subliminar (ou não), o programa, com o seu ar de descontração, demarca novamente qual é o lugar da mulher (e nós estamos em 2013): botar ordem na criançada, discipliná-las, e claro, oferecer uma excelente refeição, coisa que, obviamente, é obrigação da “mulher”.
E depois das duas batalhas, o narrador, aliviado, avisa: “mesmo sem as mulheres, pais e filhos deram um jeito de ter um dia em família”. Se deram um jeito é porque improvisaram, logo, nenhuma “família” é completa sem a “mulher”. Por fim, com um aparente toque de humor e de desafio (mundo sem mulheres), o que o programa faz é editar vidas de maneira que simbolicamente fique demarcado o lugar de cada um; e o título do programa também diz muita coisa: um “Mundo sem mulher” (sempre pensando na mulher construída a partir do macho) não pode existir, trata-se de uma equação impossível de realizar.
Que a televisão edita e intenta ditar o modo de viver não é novidade nenhuma, mas admira que em pleno século XXI, e, principalmente, num momento que o mundo ocidental debate novas configurações familiares e de parentesco, seja exibido um programa altamente equivocado e que transmite uma ideia pra lá de arcaica: o destino domiciliar reprodutivo compulsório às mulheres e o reforço do macho alfa enquanto sujeito incapaz de realizar afazeres domésticos e, obviamente, a defesa do familismo reprodutor, tão presente em campanhas eugenistas do século do XIX e XX, mas, que pelo visto ainda ecoam, só que em novas estéticas e meios de comunicação.
*Marcelo Hailer é jornalista e mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP