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A mídia precisa abandonar a cobertura da criminalidade como um produto a ser vendido num embrulho sensacionalista e passar a tratar a segurança pública como um problema social
Por Carlos Castilho, no Observatório da Imprensa
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A multiplicação de matérias veiculadas em jornais, revistas e telejornais envolvendo a participação de policiais casos de crime cria as condições, e mais do que isso, a necessidade de a imprensa colocar na agenda dos debates públicos a questão da confiabilidade nos sistemas de segurança da população.
É um tema complexo e espinhoso, mas não podemos continuar adiando a busca de respostas para a perturbadora pergunta: é esta a polícia que queremos e precisamos? A julgar pelos resultados de recentes pesquisas de opinião, a resposta é não, mas a busca de soluções é bem mais complicada do que a simples expressão de uma percepção imediata.
As autoridades policiais estão preocupadas demais em evitar o colapso do sistema de segurança e cada vez mais fechadas num corporativismo alimentado pela inglória batalha quotidiana contra o aumento da criminalidade. Já os governos só sabem fazer promessas triunfalistas e oferecer desculpas esfarrapadas. Os poderes Judiciário e Legislativo lavam as mãos e deixam que a bomba estoure noutro lugar.
[caption id="attachment_35911" align="alignleft" width="480"] Faltou uma reflexão básica com oficiais, suboficiais e praças sobre o papel da polícia numa sociedade civil e democrática (Foto Mídia Ninja)[/caption]
Sobra a imprensa como uma instituição que, mal ou bem, ainda preserva um pouco da credibilidade do cidadão e, portanto, tem condições de começar a propor o debate sobre alternativas. A omissão e desacertos dos organismos estatais estão empurrando os leitores, telespectadores e usuários da Web para dois becos sem saída: a indiferença, equivalente a jogar no lixo os impostos que pagamos e que remuneram as polícias; ou a autodefesa, o caminho mais curto para a justiça com as próprias mãos e para a xenofobia.
Não é preciso ser especialista em segurança pública para perceber que há muita coisa errada nas corporações e que não se trata apenas de desvios individuais de conduta, mas de problemas estruturais, sendo o maior de todos o fato de que as polícias colocaram os interesses e preocupações corporativas acima de suas responsabilidades sociais.
A expressão “desacato da autoridade” virou uma espécie de bordão para anular qualquer tentativa de argumentar com um policial. O cidadão acaba sendo colocado numa situação de impotência absoluta, sem possibilidade de recorrer à razão ou à lógica para defender o seu ponto de vista, quando ele diverge de uma decisão do policial. O recurso ao surrado argumento do desacato à autoridade equivale a um julgamento sumário e no ato.
Esse novo tipo de “autoritarismo” é uma herança do regime militar que ainda não foi conscientizada e nem extirpada pelos organismos de segurança pública. Faltou uma reflexão básica com oficiais, suboficiais e praças sobre o papel da polícia numa sociedade civil e democrática. A mesma cultura de tutela social imposta pelas forças armadas durante a ditadura foi mantida nas polícias, especialmente nas polícias militares estaduais.
Um policial em ronda nas ruas está a serviço dos cidadãos para resolver conflitos individuais e atender emergências. O problema é que as corporações substituíram esse comportamento pela norma da manutenção da ordem. Em vez da busca de consenso, os policiais foram imbuídos da missão de impor um tipo de conduta decidido por seus superiores. Ao decidir o que é ordem, o policial deixou de procurar entender o que ela significa para a comunidade para aplicar mecanicamente o que lhe foi determinado pela hierarquia.
Mas além de ser colocado na situação de culpado até prova em contrário, o cidadão é também levado à condição de protagonista passivo numa guerra urbana cujo visual passou a ser parte integrante da cultura policial. A prova mais evidente dessa distorção é a tendência dos uniformes e equipamentos policiais se assemelharem cada vez mais aos adotados por exércitos convencionais, cuja existência é justificada pela cultura bélica.
O recurso a símbolos atemorizadores como uniformes negros, caveiras, gritos, ruídos ensurdecedores, bem como viaturas desenhadas para combates, revelam a expansão da mentalidade bélica dentro das polícias. Essa preocupação era até agora uma marca registrada dos batalhões de operações especiais, mas está se tornando a identificação de qualquer policial.
A brutal rotina do combate ao crime organizado ajuda a entender porque as polícias acabaram incorporando a cultura da guerra no seu quotidiano e alterando a natureza de sua ação civil. Uma mudança de comportamentos muito influenciada pelo dilema imposto aos policiais por uma sociedade que cobra segurança contra uma criminalidade em expansão, mas não se preocupa em saber como esta segurança será alcançada. Não se trata de distribuir culpas e nem sanções, mas de entender a natureza do processo e tentar revertê-lo, antes que seja tarde demais.
É aí que entram jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, e a internet. A imprensa precisa abandonar a cobertura da criminalidade como um produto a ser vendido num embrulho sensacionalista para atrair compradores e passar a tratar a segurança pública como um problema social, acima das conotações políticas, econômicas e corporativistas.
A imprensa pode e deve fazer isso porque estará salvando a própria pele e recompondo sua relação com leitores, ouvintes, telespectadores e internautas. Salvando a própria pele porque os ataques a jornalistas durante os protestos de rua mostram que alguns segmentos sociais, contando com a omissão de muitos, já associam imprensa e repressão – o que é letal para a mídia como negócio e como missão.