O relatório do Grupo de Estudos Saúde Planetária da USP, intitulado “Avanço e integração das políticas de clima e saúde no Brasil: percepções de stakeholders brasileiros”, alerta para o descompasso entre as políticas de clima e saúde no Brasil. Segundo o estudo, o Sistema Único de Saúde (SUS) está sendo cada vez mais sobrecarregado por eventos climáticos extremos, como ondas de calor, secas e enchentes, propulsores de doenças como dengue, malária, zika e chikungunya e outros problemas que agravam a saúde pública.
As conclusões têm como base 33 entrevistas com representantes de vários níveis da federação, do Congresso Nacional, do meio acadêmico e de organizações atuantes em áreas relacionadas (os nomes dos entrevistados não foram divulgados na pesquisa). As entrevistas foram feitas no segundo semestre de 2024. (Confira o estudo completo ao final da reportagem).
“Os impactos que a humanidade tem causado voltam-se contra ela, sua saúde e bem-estar, e as mudanças do clima são um exemplo claro, mas não são um fato isolado, e sim consequências de múltiplos fatores”, destaca o relatório.
A pesquisa leva em conta a política sobre Mudança do Clima e do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, do governo Lula, e outros projetos que não avançam na tramitação, e de acordo com o estudo, "a polarização política, o perfil do Congresso Nacional, o negacionismo, as fake news e o plano de desenvolvimento que vai na direção oposta ao combate à crise climática –com apoio ao agronegócio e à exploração de petróleo na foz do Amazonas – são camadas adicionais de desafios que precisam ser superados para conectar políticas de clima e saúde", destacam os pesquisadores.
Há disparidades significativas nas percepções do impacto das mudanças climáticas na saúde pública especificamente, com aqueles nos países do Sul Global (Brasil, Índia, Paquistão) geralmente percebendo efeitos maiores (50% ou mais) do que aqueles no Norte Global (Reino Unido, EUA, França, Alemanha, Japão).
Um estudo publicado na revista “The Lancet” tinha revelado que, devido à emergência climática, o risco de transmissão da dengue pelo mosquito Aedes aegypti aumentou em 11% em relação à última década e advertiu que as pessoas em todos os países estão enfrentando ameaças sem precedentes. Com o aquecimento global, dez dos 15 indicadores que avaliam os riscos à saúde pioraram significativamente.
Em 2023, as pessoas foram expostas a 50 dias a mais de calor intenso, o que trouxe riscos à saúde. O aumento no número de óbitos entre os idosos é alarmante, com um crescimento de 167% nas mortes de pessoas acima dos 65 anos desde 1990 devido ao calor – um aumento bem superior ao esperado.
A insegurança alimentar também aumentou, especialmente com o agravamento das secas prolongadas, como por exemplo no Centro-Oeste do país, o que levou à elevação dos preços dos alimentos no final do ano passado.
Em diversas regiões do Brasil, trabalhadores e trabalhadoras que saem de casa para o trabalho já estão vivenciando os impactos da crise climática, muitas vezes sem perceber. O calor extremo e as chuvas intensas afetam principalmente os locais mais frequentados pela população, as áreas periféricas e atinge de forma desproporcional as comunidades mais vulneráveis, pobres, quilombolas e indígenas. É a realidade do racismo ambiental e climático.
Quase metade da população brasileira depende do transporte público diariamente ou quase todos os dias para percorrer grandes distâncias na cidade para chegar em casa ou no trabalho. O ônibus é o principal meio de transporte para 85,7% dos brasileiros, enquanto para outros 14,3% optam por metrô, vans ou fretados. E são nos transportes também que passageiros enfrentam longos períodos de calor e aglomeração ou mesmo ficam presos quando há enchentes nas cidades. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) já advertiu que mais de 70% dos trabalhadores no mundo enfrentam sérios riscos à saúde devido aos impactos das mudanças climáticas, especialmente na América Latina.
O estudo “Injustiça Socioambiental e Racismo Ambiental", realizado pelo Instituto Pólis e publicado em julho de 2022, aponta que nas áreas urbanas, a população de baixa renda e negra é mais vulnerável a inundações e deslizamentos. Em Belém, as 125 áreas de risco identificadas estão associadas a inundações ou erosões, e não coincidem com bairros mais ricos, como Nazaré e Batista Campos, onde há maior concentração de população branca. Nesses locais de risco, 75% da população é negra, com uma renda média 32% inferior à média geral da cidade. Além disso, 21% das moradias são lideradas por mulheres de baixa renda (até 1 salário mínimo), segundo o IBGE.
Em Recife, os riscos ambientais envolvem inundações de rios e deslizamentos em áreas íngremes. O risco de deslizamento afeta especialmente os bairros de menor renda, como Caxanguá, Ibura e os morros da Zona Norte. A cidade possui 677 áreas com risco geológico, onde a renda média domiciliar é de R$ 1,1 mil, 68% da população é negra e 27% das casas são chefiadas por mulheres de baixa renda.
As cidades não são preparadas para lidar com os efeitos da crise climática, facilitando o surgimento de problemas de saúde física e mental, mortes, lesões ou infartos decorrentes das temperaturas extremas, deslizamentos ou alagamentos. Já é certo que a cada evento climático extremo curto ou prolongado a população periférica saia prejudicada.
Falta de preparação das cidades expõe população à vulnerabilidades
O Instituto Cidades Sustentáveis (ICS) confirmou em maio de 2024 que a maioria dos municípios no Brasil não possui estrutura suficiente para enfrentar desastres climáticos, como enchentes, inundações e deslizamentos de terra. Dos 5.570 municípios brasileiros, 94% possuem menos da metade das 25 estratégias necessárias para lidar com esses eventos e não estão preparadas para as tragédias climáticas.
O levantamento, feito em parceria com a Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec) analisou, entre outros pontos, a inclusão de medidas preventivas, como:
- Plano Diretor que contemple a prevenção de enchentes ou inundações graduais, ou enxurradas ou inundações bruscas;
- Lei de Uso e Ocupação do Solo que contemple a prevenção de enchentes ou inundações graduais, ou enxurradas ou inundações bruscas;
- Lei específica que contemple a prevenção de enchentes ou inundações graduais, ou enxurradas ou inundações bruscas;
- Plano Municipal de Redução de Riscos;
- Plano de implantação de obras e serviços para redução de riscos de desastres;
- Mapeamentos de áreas de risco de enchentes ou inundações;
- Programa habitacional para realocação de população de baixa renda em área de risco (reassentamento em empreendimento de habitação de interesse social, pagamento de aluguel social ou similar, indenização de benfeitoria, compra de uma nova moradia, auxílio);
- Mecanismos de controle e fiscalização para evitar ocupação em áreas suscetíveis aos desastres;
- Plano de Contingência.
A presença ou ausência de cada uma das 25 estratégias foi identificada pela edição de 2020 da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados, de acesso público, foram obtidos por meio de questionários respondidos pelos próprios municípios.
Segundo o levantamento, 79% dos brasileiros acreditam que os governos municipais têm papel importante no combate às mudanças climáticas. Para 41% dos entrevistados, a medida prioritária a ser adotada pelas prefeituras é a ampliação e preservação de áreas verdes, como praças e parques. Em seguida, 36% defendem o controle do desmatamento e da ocupação em áreas de manancial, e 26% apontam a redução do uso de combustíveis fósseis como prioridade.
Com base nesses dados, o ICS criou um mapa: as cidades com menos de 20% das estratégias estão destacadas em vermelho. As faixas intermediárias incluem os municípios em laranja, com 20% a 49%, e em amarelo, com 50% a 79%.
Alternativas para conectar saúde e clima nas cidades
O relatório do Grupo de Estudos Saúde Planetária da USP reforça esses pontos e traz orientações voltadas para diferentes grupos e setores: agentes do governo federal, estadual e municipal, parlamentares, profissionais das áreas de saúde e meio ambiente, além de representantes da sociedade civil.
São estratégias que podem servir como alternativas para enfrentar esse cenário e avançar em direção à integração das políticas de clima e saúde. A Fórum resumiu as principais a seguir:
- Integrar a restauração florestal, incluindo áreas urbanas, e a recuperação dos biomas à proteção da biodiversidade e à transição energética dentro do plano de desenvolvimento nacional.
- Agilizar a produção de dados, indicadores e pesquisas que estabeleçam conexões claras entre mudanças climáticas e saúde.
- Dar à ciência um papel central no enfrentamento da crise climática e na formulação de políticas públicas eficazes.
- Intensificar o diálogo com povos originários, como indígenas, quilombolas e ribeirinhos, valorizando os conhecimentos tradicionais na busca por soluções sustentáveis.
- Criar uma liderança centralizada responsável pela coordenação e integração das políticas públicas, com os conceitos de Saúde Única e Saúde Planetária como norteadores.
- Fortalecer o diálogo intersetorial por meio de políticas participativas, educação de profissionais estratégicos – como os da área de saúde – e inclusão de novos atores no debate sobre mudanças climáticas.
- Endurecer as sanções contra poluidores e estimular uma economia de baixo carbono, revisando o arcabouço fiscal e mobilizando fundos já existentes para apoiar a adaptação climática e reduzir desigualdades estruturais.
- Melhorar a comunicação sobre as conexões entre clima e saúde, focando na conscientização, percepção de riscos e evidenciando os impactos econômicos da falta de ações preventivas.