“Escrevemos esse texto para dar voz também àqueles que não tem, e fazer ecoar vozes de quem não conseguem reagir à destruição de seus territórios”, afirma um dos trechos do artigo da Science “Indigenizando as Ciências da Conservação para uma Amazônia Sustentável", escrito pelo pesquisador indígena Justino Sarmento Rezende, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Defendendo a urgência da integração entre saberes ocidental e indígena, o texto destaca a relevância das práticas e teorias indígenas, que há mais de 12 mil anos têm contribuído para preservar e restaurar o meio ambiente.
Longe de ser uma utilidade para a sobrevivência do próprio Ocidente, o artigo aponta que o conhecimento indígena pode resultar em uma ciência mais integrada junto ao conhecimento ocidental, que compreenda a relação indissociável entre cultura e natureza, reconhecendo, assim, as contribuições dos povos originários na preservação dos ecossistemas.
O trabalho sintetiza os conhecimentos dos povos indígenas do Alto Rio Negro, localizado no estado do Amazonas. Para as comunidades, o mundo está dividido em três domínios – terrestre, aéreo e aquático – ocupados não só pelos humanos, mas por outros seres, como animais, plantas e rios, além dos “outros humanos” ou “encantados”, seres que habitavam o mundo antes dos humanos e que são consultados pelos pajés. Para acessar os elementos naturais, é necessário pedir permissão e negociar com os seres presentes nesses domínios, respeitando os rituais que mantêm o funcionamento dessa complexa rede cosmopolítica.
Desconstrução da visão colonialista
“Uma das principais lições dos conhecimentos indígenas do Alto Rio Negro é compreensão de que as vidas se estabelecem em conexão. Nada existe sozinho, tudo está relacionado”, disse Carolina Levis, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
“Enquanto o pensamento ocidental está enraizado em visões utilitaristas e antropocêntricas da natureza, os povos indígenas amazônicos entendem que a natureza e seus elementos também são dotados de qualidades de pessoas e tudo faz parte de um sistema integrado”
O artigo aponta o desafio de conferir ao conhecimento indígena o status de ciência, uma vez que, como Levis destaca, “os especialistas são formados nas aldeias, e não nas universidades”. Por isso, os autores sugerem que é fundamental que universidades e instituições de pesquisa proporcionem espaços para a ciência indígena, reconhecendo e valorizando as cosmovisões dos povos originários.
Os ecossistemas amazônicos são frequentemente analisados como sistemas “intocáveis” e "naturais", mas os povos indígenas da região desenvolvem práticas inovadoras que promovem transformações contínuas da natureza, como o cultivo da Terra Preta Amazônica, o manejo de florestas culturais e sistemas agroflorestais. Essas práticas, embora eficazes, não são totalmente incorporadas nas abordagens tradicionais de conservação.
Pesquisas científicas nas áreas de arqueologia, ecologia e antropologia, quando alinhadas ao conhecimento indígena, mostram que as técnicas indígenas de manejo das paisagens, das águas, das plantas e dos animais têm sido fundamentais na formação da biodiversidade e dos ecossistemas amazônicos por milênios.
Segundo os pesquisadores, essas descobertas colocam em xeque a visão colonialista de floresta "intocada", que tem guiado os sistemas de uso da terra ao longo dos séculos e que ainda influencia as práticas de uso da terra que causam degradação ambiental e desflorestação em larga escala.
De acordo com o artigo, o enquadramento indígena captura variáveis e relações ecológicas sutis, muitas vezes negligenciadas pela ciência ocidental tradicional, mas apoiadas por teorias socioecológicas contemporâneas em diálogo com as ciências indígenas, que também mostram que tratar os humanos como agentes excepcionais separados dos ecossistemas é menos eficaz na compreensão do funcionamento e da dinâmica ecológica do que considerar os humanos como participantes dos ecossistemas.
Por uma ciência nova
“Só recentemente os conhecimentos indígenas foram reconhecidos como importantes para enfrentar os desafios trazidos pela crise climática. Alguns cientistas sociais e ambientais propõem que os conhecimentos indígenas sejam reconhecidos em seus próprios termos, não necessariamente validados pela ciência da conservação para serem considerados legítimos”, destaca ainda o texto.
Justino Rezende defende a integração como solução para o bios climático. “Um único sistema de conhecimento não será suficiente para enfrentar a emergência climática, é necessário o diálogo entre múltiplos conhecimentos. Precisamos sentar todos na mesma mesa para decidir o que podemos fazer e projetar estratégias, soluções e inovações”.
Cientistas indígenas deixam claro que não estão defendendo a incorporação das próprias crenças religiosas na prática científica, pois é “especialmente apropriado no contexto da nova estrutura ética e legal que está surgindo para defender os direitos da natureza”, escrem os autores. Esses direitos foram consagrados nas constituições de países como Equador e Bolívia, além de serem reconhecidos pela primeira legislação municipal na Amazônia brasileira, que estabelece que o rio Komi-Memen, um afluente do rio Madeira, possui o direito de existir, prosperar e restaurar sua força.
Inclusive, uma matéria da Fórum mostrou em junho deste ano o projeto “Arapiuns, Rio de Direitos”, que também tem por objetivo reconhecer o Rio Arapiuns, no Pará, como um ente vivo e sujeito. A iniciativa fo resultado de uma grande mobilização que começou em 2023, envolvendo cerca de 150 comunidades do território.
*Com informações de Agência Bori