O avanço desenfreado do agronegócio sobre comunidades rurais, indígenas, quilombolas e ribeirinhas, despejando litros de agrotóxicos por esses territórios em cima de crianças, idosos e mulheres grávidas, anuncia: uma guerra química que acontece nos interiores do Brasil.
Em primeiro no ranking como o país mais perigoso para defensores do meio ambiente, o Brasil somou, somente em 2022, cerca de 2.018 conflitos no campo, envolvendo 909.450 pessoas, segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Naquele ano, 8.033 famílias foram atingidas por essa guerra química, que fez 193 vítimas. Já em 2023, esse tipo de violência foi o que mais vitimou comunidades, somando quase o dobro de pessoas do ano anterior: 336.
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O uso de agrotóxicos como arma química em conflitos agrários é uma das práticas mais cruéis para expulsar comunidades de seus territórios e vem se consagrando como a estratégia mais usada para a apropriação ilegal de terras nos últimos anos, como apontou o último Atlas dos Agrotóxicos. Segundo o mapeamento, a utilização de agrotóxicos em conflitos foi registrada em todas as regiões e biomas brasileiros, especialmente em disputas que envolvem territórios indígenas e quilombolas.
As comunidades vítimas dos agrotóxicos se localizam, geralmente, perto de fazendas de monocultura, que não respeitam os limites mínimos de distância. A contaminação acontece, principalmente, por meio da pulverização aérea sobre as comunidades, técnica alvo de debates e críticas não só no meio de movimentos sociais, mas também na política, pelo alto risco à saúde das comunidades. A proibição da prática é debatida em pelo menos dez estados do país, de acordo com levantamento da Repórter Brasil.
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Até o momento, somente o estado do Ceará possui uma legislação que proíbe a prática. A lei foi questionada por pelo menos quatro anos pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Porém, em maio do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade da lei, abrindo espaço para que o debate avançasse em outras regiões do país.
Apesar disso, a discussão sobre a pulverização aérea e o cenário de uso de agrotóxicos no Brasil ainda encontra sólidas barreiras que favorecem o agronegócio e seu avanço sobre comunidades que se tornam vítimas dessa guerra química.
Diversos levantamentos feitos por diferentes movimentos sociais, que prestam assistência a comunidades vítimas de conflitos agrários pelas regiões do país, mostram em números e relatos os cenários cruéis do uso de agrotóxicos para expulsão em territórios tradicionais.
Vivendo sob o medo no Maranhão
No começo de agosto, a Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama) atualizou o mapa “Territórios Diretamente Vitimados por Agrotóxicos no Maranhão" com dados sobre o despejo dos compostos químicos sobre comunidades tradicionais entre janeiro e julho deste ano.
De acordo com o documento, são 190 comunidades tradicionais, quilombolas e assentamentos rurais em 32 municípios sofrendo graves consequências devido à pulverização de agrotóxicos. O veneno é despejado não só sobre as plantações dessas comunidades, que perdem seus alimentos e seu sustento, mas também sobre suas casas, além das próprias pessoas durante seus deslocamentos.
Em entrevista à Fórum, Ariana Gomes, coordenadora da Rama, conta que durante visita às comunidades para o mapeamento dessa guerra, presenciou pessoas com feridas causadas pelos agrotóxicos, além de mulheres grávidas doentes devido ao veneno despejado. Outras sequelas são constantes dores de cabeça, coceira no corpo, falta de ar, vômito, além do impacto psicológico nas comunidades.
Esse cenário acontece há pelo menos três anos, segundo Ariana, que também conta que denunciar esta realidade às autoridades locais não vem trazendo resultados efetivos. Além das comunidades serem ainda mais ameaçadas após a denúncia, não há retorno dos órgãos responsáveis à Rama.
Uma moradora de uma das comunidades rurais, na cidade de Timbiras, nos relata a situação de sua comunidade. Por questão de segurança, a reportagem irá manter seu anonimato, assim como de sua comunidade.
Segundo a vítima, a sensação de medo e de ameaça é constante. Localizados ao lado de uma fazenda, o despejo de agrotóxicos acontece a qualquer hora do dia.
"Somos alvos de ataques a qualquer momento do dia e por vários dias consecutivos. O despejo do veneno é feito por aviões que passam por cima de nossas casas, por cima de pessoas e nem se preocupam com quem está fora de casa. Na grande maioria das vezes, as pessoas estão no meio do descampado, trabalhando em suas roças", conta a moradora à Fórum.
Ela também relata que o cheiro dos agrotóxicos é tão forte que a comunidade sempre sente náuseas e dores de cabeça após o despejo. Em março deste ano os moradores foram alvos das ações durante dez dias consecutivos.
"Meu marido estava na roça trabalhando quando o avião passou por cima dele a da plantação toda", diz. "Tiveram várias pessoas que ficaram com ferimentos, outras com dor de cabeça, vômitos e tontura", acrescenta.
O despejo de agrotóxicos também prejudica as plantações dessas comunidades, que chegam a perder colheitas inteiras. "Além de ameaçados, sentimos como se todo o nosso trabalho não valesse a pena, pois sabemos que perdemos a colheita que é fundamental para o nosso sustento. É da roça que vivemos e sustentamos nossas famílias", desabafa.
"Além de perdemos a colheita, os peixes também acabam morrendo, a água que bebemos fica contaminada, as frutas não podemos comer porque todas são envenenadas", completa a moradora.
Após uma série de denúncias da Rama e da Federação dos Trabalhadores Rurais do Maranhão (FETAEMA), o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Maranhão (CEDDH) realizou, em abril deste ano, uma inspeção em algumas comunidades tradicionais da zona rural de Timbiras, como São José, Baixa Nova, Morada Nova, Buriti, Capinal, Santa Vitória, Passa Mal e Maresia.
No encontro, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STTR) de Timbiras mostrou um levantamento que aponta uma perda estimada entre 50% e 70% da produção agrícola para o ano de 2024 após a pulverização aérea de agrotóxicos sobre as comunidades no mês anterior.
Contaminação por ar, solo e água
Além do despejo de agrotóxicos pela pulverização aérea afetar diretamente os corpos dos moradores das comunidades, eles também são infectados através dos alimentos que consomem e que são atingidos pelo veneno e pela água que ingerem, também contaminada.
A Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) mapeou, em 2023, sete territórios do Cerrado que sofrem com a contaminação dos agrotóxicos, são eles: Comunidade Barra da Lagoa (PI), Acampamento Leonir Orback (GO), Comunidade Geraizeira de Formosa do Rio Preto (BA), Território Tradicional Serra do Centro (TO), Território Cocalinho (MA), Comunidade Cumbaru (MT) e Assentamento Eldorado II (MS)
A partir da coleta e análise da água desses territórios, os pesquisadores identificaram ao menos um resíduo de agrotóxicos. Do total, 46,15% não são autorizados na União Europeia, que possui uma política bem mais rigorosa de controle do que o Brasil. O resultado impressiona, pois mostra a presença cotidiana das substâncias tóxicas na vida das comunidades.
Ao todo, foram identificados 13 agrotóxicos nas amostras de água, dos quais oito forneceram análises quantitativas. Desse universo, quatro estão entre os dez mais comercializados no Brasil em 2021. O glifosato, agrotóxico mais utilizado no mundo e associado a câncer, Alzheimer, autismo e mal de Parkinson, ocupa a primeira posição, sendo seguido do 2,4-D (segunda), da atrazina (quinta) e do metolacloro (décima posição).
Outro levantamento, feito pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e pela Terra de Direitos, apontou que somente 32% dos agrotóxicos pulverizados atingirão as plantas-alvo, enquanto 49% irão para o solo e 16% serão dispersados pelo ar para áreas próximas à aplicação.
Veneno em Terras Indígenas
Na aldeia do povo indígena Guarani Kaiowá, da TI Guyraroka, localizada no município de Caarapó no Mato Grosso do Sul (MS), o ataque com agrotóxicos acontece desde 2018. O despejo do veneno é apontado como a principal causa dos conflitos na TI, de acordo com o Mapa de Conflitos da Fiocruz. Situada no meio de uma monocultura do agronegócio, a comunidade conta com cerca de 90 indígenas.
“Era umas quatro horas da manhã quando o avião começou a passar o veneno. Ele foi parar por volta de umas 9h, 9h40 por aí. Agora eles estão passando o ressecante tanto com trator como com avião. De ontem para hoje, uma criança passou mal. Tá com falta de ar, vômito. Tá só piorando, só piorando”.
Esse é o relato Erileide Guarani Kaiowá, liderança da TI Guyraroka, ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em fevereiro deste ano. Já no mês de agosto, Erileide participou de uma audiência pública na Câmara dos Deputados, junto a pesquisadores e representantes do governo, para denunciar essa guerra química que dizima seu povo. "Nós estamos morrendo aos poucos, envenenados pelo agronegócio", disse durante a reunião.
Também neste ano, no mês de março, a guerra química vitimou uma indígena grávida na TI Jaguapiru. O caso só veio a público em julho, quando o Ministério Público Federal (MPF) realizou uma operação na região e apreendeu 750 litros de agrotóxicos que seriam usados por um fazendeiro vizinho à aldeia.
Impunidade
A assessora jurídica da organização Terra de Direitos, Jaqueline Andrade, conta outros relatos que recebeu das aldeias indígenas Avá Guarani/Ocoy, Ijuí e Tekoha Guasu Guavirá, e de uma comunidade quilombola, todas localizadas no Paraná. Nesses territórios, as populações são vítimas do despejo de agrotóxicos através do uso de tratores. Em uma das aldeias, o despejo aconteceu durante um encontro de mulheres com o intuito de intimidá-las.
A Terra de Direitos atua ajudando as comunidades a fazerem as denúncias aos órgãos responsáveis, como o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal. Porém, é um processo desafiador e, na maioria das vezes, frustrante, como conta Jaqueline, já que dificilmente os fazendeiros serão responsabilizados civil ou criminalmente pelo uso de agrotóxicos como arma química.
Apesar dos relatos, registros em vídeos e fotos do despejo do veneno sobre a comunidade e testemunhas, outros fatores impedem a responsabilização dos fazendeiros. Isso acontece muito pelo poder que eles exercem sobre os territórios que, na maioria das vezes, vai reverter a situação: ao invés da denúncia na Justiça gerar uma penalização aos fazendeiros, as comunidades que entraram com a ação é que serão criminalizadas e ainda irão sofrer mais ameaças por terem denunciado.
Outra falha apontada por Jaqueline é que, na maioria das vezes, quando acontece a responsabilização criminal ou cível, ela é revertida em multa. Apesar de ainda ser uma forma de penalização, ela não é eficaz para que os fazendeiros, donos de muito dinheiro, deixem de travar essa guerra química.
"O problema é muito maior do que isso. É questão de demarcação territorial mesmo, que falta. Os fazendeiros não vão deixar de plantar e usar veneno, mas isso não aconteceria se houvesse a demarcação territorial ou titulação das comunidades, ou regularização fundiária. O problema é a não realização da reforma agrária, porque daí você tem ao seu redor esses fazendeiros que vão, em consequência do modelo de agricultura hegemônica, fazer uso do veneno, inclusive como arma química", diz Jaqueline.
As consequências da contaminação
As consequências na saúde de pessoas contaminadas por agrotóxicos são diversas e ainda não há um consenso exato de quantas, já que o cenário se amplia ano após ano. Porém, estudos realizados por diferentes instituições e centros de saúde mostram que os impactos são crueis.
Os agrotóxicos, como o nome já demonstra, são substâncias com alta toxicidade, o que significa que geram danos à saúde podendo levar à morte. Suas consequências são diversas: alterações nos sistemas imunológico, nervoso, respiratório, circulatório, endócrino e reprodutivo. Uma série de pesquisas já buscou investigar a relação de agrotóxicos no organismo humano com o desenvolvimento de cânceres.
Um estudo feito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de 2022, mostrou que 30% dos agrotóxicos aplicados de avião em plantações de cana-de-açúcar de São Paulo têm associação ao desenvolvimento de câncer. Apesar da importância de se obter informações sobre o despejo de agrotóxicos através de avião, os dados não são abertos ao público e foram acessados pela primeira vez pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 2022.
O glifosato, por exemplo, um dos agrotóxicos amplamente usados, é identificado como um agente capaz de desencadear doenças cardíacas. Sua utilização está associada a uma disfunção que, em estágios posteriores, pode progredir para insuficiência cardíaca, assim como para insuficiência renal. Doença de Parkinson, leucemia e alterações hormonais também são citadas em estudos relacionados.
Já um levantamento divulgado na revista Academia Nacional de Ciências (PNAS), em outubro do ano passado, mostrou que 123 crianças com menos de 10 anos morreram de Leucemia Linfoblástica Aguda (LLA) causada pela exposição a agrotóxicos usados na plantação de soja, entre os anos de 2008 e 2019.
As consequências não param por aí: de acordo com uma pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal do Mato Grosso (Neast/UFMT), nos municípios de maior produção agrícola encontram-se as maiores taxas de abortamentos espontâneos em mulheres em idade fértil (10 a 49 anos). Somente entre 2016 e 2018, foram registrados 2.700 casos de aborto espontâneo, sendo 47,5% em mulheres que tinham entre 20 e 29 anos.
Outras duas pesquisas, uma realizada pela UFMT e outra pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), identificaram a presença de agrotóxicos no leite materno. O estudo da UFMT encontrou pelo menos 1 dos 10 agrotóxicos analisados, considerados Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs), nas amostras de leite.
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Já a pesquisa da Unesp analisou a presença do glifosato no leite materno e constatou a presença do agrotóxico em todas as amostras de 100 mulheres residentes da cidade de Tupã, no interior paulista.
PL do Veneno
Apesar de todo este cenário, os agrotóxicos no Brasil continuam sendo defendidos até mesmo pela legislação. No ano passado, o Projeto de Lei (PL) 1459/2022, chamado por ambientalistas de "PL do Veneno", só avançou no Congresso Nacional, com apoio da bancada ruralista, até chegar à sanção presidencial.
Apesar do presidente Lula ter vetado 14 trechos, argumentando que a ampliação do uso de agrotóxicos representa riscos ao meio ambiente e à saúde humana, o Congresso derrubou os vetos em abril deste ano. Agora, em forma da Lei n° 14.785/2023, o projeto é uma forte ameaça às comunidades rurais e representa uma escalada nos conflitos agrários.
Também tramitam na Câmara dos Deputados algumas iniciativas que visam proibir a pulverização aérea de agrotóxicos em todo o território nacional, a exemplo do Projeto de Lei 1131/2023 que, originalmente, foi proposto em 2015 na forma do PL 1014/2015, do deputado João Daniel (PT), e que se encontra na Mesa Diretora desde abril do ano passado.