Por Gabriel Galli *
Na última década, o movimento LGBTI+ brasileiro teve avanços muito concretos na garantia de direitos. Podemos casar, adotar, doar sangue, a discriminação contra nós foi criminalizada e passamos a ocupar mais espaços na mídia e na política. Isso até pode fazer com que alguns, principalmente os que não são LGBTI+ e não acompanham de perto nossa luta, pensem que já conquistamos o suficiente. Mas nós sabemos que ainda falta muito.
Muitos dos direitos que temos hoje estão garantidos apenas no papel e são reservados à parcela da nossa comunidade que ocupa as classes economicamente mais altas. Para a grande maioria, principalmente para as pessoas trans e negras, a miséria que já vinha se acentuando nos últimos anos ficou ainda mais intensa com a pandemia de Covid-19, gerando mais vulnerabilidade. Seria ingênuo demais achar que quem luta diariamente apenas para continuar existindo terá as mesmas condições de usufruir da possibilidade de casar, adotar e doar sangue. A essas pessoas é negado o direito básico de permanecer na escola, de conseguir um emprego e de cuidar da própria saúde.
A miséria que nosso país vive faz parte de um projeto expressado nas políticas neoliberais de Paulo Guedes, Bolsonaro e dos grandes bilionários do país, que durante a pandemia enriqueceram sem parar enquanto o povo passa fome. As pessoas LGBTI+, que já acumulam outras opressões, sentem os efeitos do empobrecimento primeiro, assim como a população negra e indígena.
O avanço conservador na pauta de costumes também faz parte deste projeto. Bolsonaro e seus apoiadores identificaram com maestria que nosso povo foi educado em uma lógica cristã rasa que atribui à sexualidade o pecado e o erro. Durante a corrida eleitoral, nos usaram como forma de colocar medo na população, inventando notícias falsas que nos acusavam de abusar de crianças e destruir a família (apesar de que essa família tradicional homofóbica, machista e hipócrita eu gostaria de destruir mesmo). Fomos espantalhos úteis em um jogo de comunicação que precisa de escândalos frequentes para mobilizar o ódio das pessoas como ferramenta de apoio.
E se fosse só isso, apenas, o prejuízo seria menor. Esta pauta do ódio não é apenas uma cortina de fumaça, é levada à cabo em todas as esferas de governo, mas que tem como expoentes as tentativas diárias da ministra Damares Alves de boicotar qualquer ação envolvendo diversidade sexual e de gênero no governo, de regular a educação doméstica e de impedir o trabalho de áreas como a do combate à tortura no sistema prisional. No Ministério da Educação, somem os projetos de combate ao bullying e estímulo à diversidade. Na Saúde, o departamento voltado ao HIV/Aids é reconfigurado e as campanhas de prevenção se tornam cada vez mais discretas e pudicas. Na Cultura, desaparecem os projetos e setores que lidavam com o tema da diversidade. Os conselhos de direitos são ignorados. Isso só para citar os exemplos mais gritantes.
É possível pensar em outra prioridade para o movimento LGBTI+ neste momento que não o combate a esse projeto de poder que quer construir no Brasil uma teocracia da miséria onde a diversidade é eliminada e as opressões amplificadas? É evidente que temos muito a conquistar na pauta específica da diversidade sexual e de gênero, mas como fazer isso com um governo que nos coloca como inimigos declarados? Como construir um ambiente de educação mais acolhedor, pensar em políticas de saúde para a população LGBTI+, coletar dados sobre a violência que nos atinge e garantir emprego para pessoas trans e travestis nesse cenário?
Em 2021, 52 anos depois da revolução de Stonewall, que marca o dia de hoje, do orgulho de ser quem somos, não há outra saída que não seja mobilizar nossas bases para enfrentar o bolsonarismo e lutar por uma saída em que nossos direitos humanos não sejam mais usados como moeda de troca. O movimento LGBTI+ tem um papel histórico de mostrar que não aceitará as ameaças do autoritarismo e do fascismo.
*Gabriel Galli é jornalista, mestre em Comunicação e ativista pelos Direitos Humanos das pessoas LGBTI+ e vivendo com HIV/Aids. É diretor da ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade – e assessor parlamentar.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.