A primeira vez que entrevistei a cartunista Laerte Coutinho foi há 10 anos, em uma noite de dezembro, na livraria Fnac de Pinheiros, que nem existe mais.
Tratava-se de um evento especial: era o primeiro evento público com a Laerte no feminino, ela tinha acabado de assumir a sua transgeneridade. Era a segunda revolução em sua vida: a primeira foi nos quadrinhos, a segunda era corpórea. Ambas continuam.
Acompanhei a palestra da Laerte como admirador, mas também como jornalista e o nervosismo parecia o de um estreante, pois, em pouco tempo conversaria com aquela que é considerada uma das maiores cartunistas do mundo.
À época, não era apenas a cartunista Laerte que passava por uma transformação, mas o Brasil também, era o início do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher a se tornar presidenta no país.
Dilma Rousseff trazia nas costas algumas políticas históricas voltadas para a comunidade LGBT executadas durante as duas gestões do ex-presidente Lula: o Programa Brasil Sem Homofobia, a criação da Coordenação de Políticas LGBT e a realização de duas Conferências Nacionais, sendo que a primeira contou com a presença do presidente Lula, que discursou na abertura e gravou mais um marco em sua carreira.
Neste mesmo ano em que Laerte transformava a sua vida e a sua arte, o Brasil dava um passo à frente nos direitos LGBT: O Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, tornou legal a união civil entre as pessoas do mesmo sexo.
Mas também foi neste mesmo ano que o governo de Dilma Rousseff daria um passo para trás em relação às políticas públicas LGBT: após ser vítima de uma fake News dos fundamentalistas, a presidenta mandaria cancelar o Programa Escola Sem Homofobia, foi da gaveta para a lata do lixo.
Antes das tirinhas de Muriel, onde a cartunista retrata o dia a dia de uma mulher trans, a questão dos direitos da classe trabalhadora já se fazia presente na obra de Laerte com o João Ferrador, um clássico.
Mas foi também com os Piratas do Tietê que Laerte também trouxe questões existenciais para a sua obra, sempre com o viés da crítica social.
A transformação de Laerte também foi para os quadrinhos com a personagem Muriel, nela acompanhamos as transformações e dilemas políticos das pessoas trans.
Dessa maneira, a transformação de Laerte vai ao encontro das mudanças políticas pelas quais passaram o Brasil nos últimos 10 anos: da vanguarda de políticas públicas LGBT para se tornar palco da extrema direita fundamentalista que suscita o ódio às pessoas não heterossexuais.
De maneira paradoxal, o Brasil segue sendo o país que mais mata LGBT, mas também em sua última eleição elegeu candidaturas trans em todo o país.
Como jornalista, mas também como pesquisador e militante LGBT, vivenciei as transformações da Laerte e do Brasil.
A Laerte já fazia parte da história do Brasil, mas se transformou e adentrou uma outra história desse país, que são as pessoas que performam sexualidade fora da norma.
Ah, mas e a entrevista na Fnac? Conversamos sobre a sua transição, a perda do filho e o filósofo Paul Preciado. Posteriormente, seguimos para a rua e continuamos a conversa.
Encontraria a Laerte muitas vezes depois, sempre em eventos e ações políticas LGBT. A completude de seus 70 anos é a celebração da sobrevivência das ideias críticas e uma fonte de inspiração para muitas LGBT.