Pose e a Luta de classes

A partir das batalhas de “voguin”, serie apresenta cotidiano das LGBT negras e latinas nos EUA entre as décadas de 1980 e 1990

Foto: divulgação
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Estreou recentemente a segunda temporada da série Pose, provavelmente uma das melhores produções sobre as vidas LGBT entre as décadas de 1980 e 1990 nos EUA.

E do que trata a série? O cenário principal se dá na boate comandada pela personagem Pray Tell (Billy Porter) que narra as batalhas, que são divididas em várias categorias. A série tem como inspiração o documentário "Paris is burning", que acompanha alguns personagens que participam dessas batalhas que deram origem ao "vogue", este, por sua vez, inspirou a cantora Madonna a compor o seu clássico.

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Paralelamente as batalhas, acompanhamos as Casas, que são comandadas, quase todas por mulheres transexuais e travestis. E aqui entramos num caráter muito bem desenvolvido pelos produtores da série: as personagens são todas afro-americanas e latinas. Toda a estrutura da série está alicerçada na questão do racismo e da transfobia estruturais.

As personagens principais são: o já citado Pray Tell, Blanca Evangelista (MJ Rodriguez), Elektra (Dominique Jackson), que é a mãe da Casa Wintour, Damon Richard (Ryan Jamaal Swain) e Angel Evanelista (Indya Moore), também filha de Blanca. Bom, há ainda uma gama de oturas personagens que orbitam no universo dos citados.

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Vale destacar a luta contra o HIV/Aids que é o tema central da segunda temporada. Para abordar tal questão, a série traz a história do grupo militante ACT-UP, muito forte em Nova York e Paris (França). Este coletivo atuava em algumas frentes: desmantelar o discurso religioso que apontava o HIV/Aids como uma “peste gay”, neste caso, os ativistas alertavam que se tratava de um vírus que não tinha orientação sexual, nem raça e nem classe.

Em outra esfera, os militantes do ACT-UP realizaram campanhas de prevenção e, dessa maneira, tornar popular e de uso habitual os preservativos; no caso francês, eles também atuaram para que o governo reconhecesse a existência de uma epidemia, assim, as pessoas poderiam se tratar no sistema público de saúde.

Neste momento histórico cabe fazer um destaque para o movimento LGBT (homossexual e de lésbicas, à época) e a sua atuação diante do HIV/Aids. Foi graças a articulação de militantes do Brasil que, em 1990 o estado de São Paulo inauguraria o Programa de prevenção e combate à Aids que, posteriormente seria adicionado ao Sistema Único de Saúde (SUS) para se tornar uma referência mundial. Coisa que, infelizmente, diante do atual “governo” está sob ataque e risco.

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Apresentada a estrutura narrativa da série, vamos às duas questões a serem tratadas neste texto: Luta de classes e trabalho criativo.

Luta de classes
A questão da luta de classes permeia toda a trama. A principal é o que está acontecendo em termos culturais nos EUA no fim da década de 1980 e começo dos anos 1990. O Bronx é o bairro onde toda a trama se passa e, em variados momentos, a produção coloca Nova York como uma cidade dividida em termos sociais, culturais e financeiros.

As roupas e as músicas também são signos utilizados para representar as diferenças de classe, raça e identidade nacional, bem como a maneira do falar: gírias e sotaque.

Na primeira temporada acompanhamos Blanca em seu protesto cotidiano: entrar num bar gay e tomar uma cerveja, porém, a maioria dos bares voltados para homens gays não permite que travestis e transexuais permaneçam no recinto. Esses ambientes, é claro, são completamente brancos.

É praticamente impossível assistir a essa série e não se lembrar do documentário “A Morte e a Vida e de Marsha P. Johnson”.

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Todas as personagens buscam trabalhos e meios para realizarem os seus talentos e sonhos, porém, não basta ter talento e beleza quando se é negro e latino numa sociedade profundamente racista e classista. E ao retratar tal cenário, a série não alivia.

A divisão por classe e raça fica evidente quando Madonna, inspirada na dança Vogue (ou voguin), compõe o seu clássico que leva o mesmo nome. Consequentemente, o Bronx é tomado pela parcela branca da sociedade nova iorquina.

Algumas personagens chegam a acreditar que chegou o momento da cultura deles ganhar o mundo pelas suas mãos…

Mas, se de um lado a sociedade expulsa esses corpos, estes não se darão por vencido, e é aqui que entramos no nosso próximo ponto.


Trabalho criativo e desalienação em Pose
Fazendo uma articulação com as teses de trabalho criativo e trabalho alienado e, neste sentido, a constituição do indivíduo só pode se dar a partir do trabalho criativo (em comunidade), pois, o indivíduo se reconhece no resultado, ao contrário do trabalho alienado, onde o objeto final é estranho ao trabalhador, não lhe diz nada. Há apenas uma relação de trabalho e salário.

As personagens de Pose transitam por essas duas esferas do trabalho: nas batalhas e com suas famílias, ambos são trabalhos criativos, elas se constroem mutuamente; às vezes, quando conseguem trabalhos formais se alienam, não quando são obrigadas a dissimular uma vida e, em algumas ocasiões, pagam com a própria vida.

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Essa dinâmica de constituição da pessoa mediante ao trabalho criativo nos coloca outra perspectiva quando pensamos nas identidades.

Mais uma vez recorremos a Marx, para quem não existia uma essência humana estática e eterna. A constituição da pessoa enquanto, digamos, figura humana se dá no processo do trabalho criativo juntamente com o processo histórico e material, e sempre em termos comunais e nunca em termos individuais.

Portanto, mais do que "performances de gêneros", a vivência sob certas identidades, tais como LGBT, ou das pessoas negras e não brancas (pensando aqui nas personagens latinas da série), é um conflito constante entre o trabalho criativo e alienado.

Na comunidade assumimos e desenvolvemos constantemente a nossa pessoa, no âmbito do trabalho alienado dissimulamos, não quando voltamos para o armário.

Performamos gênero ou performamos trabalhos criativos para construir identidades em eterno processo histórico e material? Ou ambos os processos se dão simultaneamente?

Este é o cerne da série Pose. Mas a série vai além: as pessoas negras e latinas, expulsas de todos os lugares criam as famílias para que os seus filhos, sobrinhos e netos possam trabalhar criativamente e se constituírem como cidadãos desalienados.

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Esse processo histórico continua: mulheres, LGBT e pessoas negras continuam com as suas lutas, as vezes juntos, as vezes separados, na construção de um mundo desalienado, onde ao fim do trabalho, mais do que representação, possamos também nos identificar com o mundo e as coisas, e não nos sentirmos alienígenas diante do mundo material que se apresenta.

Em uma sociedade alienada, ou seja, onde a maioria não se identifica com o próximo, fruto do trabalho alienado como modo de vida, grupos que ousam viver de maneira a se reconhecer no outro a partir de seus trabalhos não alienados, só podem receber como resposta de uma sociedade, ou como diria Marx, uma sociedade que vive sob uma caricatura do que é uma comunidade humana, enfim, só podem receber o ódio como resposta: ódio por terem identidades (oriunda do trabalho criativo e comunitário) e por ousarem lutar por justiça e direitos.

Uma sociedade alienada não sabe o que isso significa, pois, a vida é sempre uma unidade e nunca uma coletividade.

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Referências:

Pose, 2018.
Criadores: Ryan Murphy e Brad Falchuk
Canal: FX/ Também disponível na Netflix.

Bibliografia:

BUTLER, Judit. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: ed. Civilização Brasileira, 2008.

FACCHINI, Regina. SIMÕES, Julio. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2007.

GARCIA, Carla Cristina (Org.). O rosa, o azul e as mil cores do arco-íris: Gêneros, corpos e sexualidades na formação docente. São Paulo: AnnaBlume, 2017.

MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

Documentários citados:

“Paris is burning”, 1990.

“A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson”, Netflix, 2017.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum