Glória Perez na contramão da representatividade: "Ser trans não significa ter talento para ser uma trans"

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A falta de representatividade da população trans na publicidade, na TV e na indústria cultural como um todo é um dos principais combustíveis da transfobia no país em que mais se mata transexuais e travestis no mundo. Glória Perez, da Globo, ao escolher uma atriz cis para interpretar o papel de uma pessoa trans em uma novela, vai na contramão da luta dessa população e do próprio discurso da Globo, que tanto insistiu em representatividade no fatídico programa "Amor e Sexo" Por Ivan Longo Falar de representatividade trans de forma tão aguerrida, como foi feito naquele fatídico programa "Amor e Sexo" do dia 2 de março, não tem validade se, na prática, a emissora com maior alcance do país escolha, para interpretar personagens trans em suas novelas, atores e atrizes cisgênero, justamente no país em que mais se mata transexuais e travestis no mundo. Na nova novela da Globo, “A Força do Querer”, escrita por Glória Perez, com direção artística de Rogério Gomes, a atriz Carol Duarte será Ivana, filha de Eugênio (Dan Stulbach) e Joyce (Maria Fernanda Cândido) fará o papel de um homem trans. A pergunta que ficou no ar é: Por que a Globo, que diz se preocupar com essas causas, não busca uma atriz (ou ator) trans para fazer o papel? Em entrevista recente ao portal O Dia, a autora da novela, Glória Perez, foi questionada pelo assunto e sua resposta beira à transfobia ao comparar a representatividade trans com a escolha de um ator para interpretar um mafioso, por exemplo. "Ser trans não é sinônimo de ter talento para entrevistar uma trans. Imagine se em 'O Poderoso Chefão' tivessem aberto mão de Marlon Brando para contratar um mafioso de verdade?... estaria extinta a profissão de ator!", disparou. A atitude de Perez vem em meio a um crescente movimento contra o "TransFake" e pela representatividade trans na TV, no cinema, na publicidade, no teatro e na indústria cultural como um todo. O Movimento Nacional de Artistas Trans divulgou, no mês passado, um manifesto que já foi assinado por centenas de artistas em que evidencia o quão necessário é, para combater a transfobia, que homens e mulheres trans assumam sua própria representatividade. "Por que não tem atores cis interpretando as heroínas das historias? Ou atrizes cis fazendo papel de galã? Não faz sentido, né? Então por que, quando se trata de personagens trans, convidam pessoas cis para os papéis?", questiona o movimento em um trecho do manifesto. "Nós estamos aqui e existimos. Cansamos de servir apenas como experimentos cênicos para teatro, cinema, televisão e trabalhos acadêmicos. Queremos e precisamos de oportunidades e emprego", completam. Confira, abaixo, a íntegra do manifesto.
Manifesto REPRESENTATIVIDADE TRANS JÁ. Diga NÃO ao TRANS FAKE Nós atrizes e atores trans (travestis, mulheres e homens trans) organizados, vimos através deste manifesto buscar nossa representatividade, visibilidade e reconhecimento na produção artística na TV, no teatro e no cinema. Somos a população mais estigmatizada e marginalizada da nossa sociedade. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Somos assassinadxs todos os dias, com extrema violência, ódio e requintes de crueldade. Nossa segunda causa de morte é o suicídio.A vida média de uma pessoa trans é de apenas 35 anos. Somos, quase todxs, expulsas de casa muito cedo, às vezes com apenas 12 ou 14 anos de idade. Mais de 90% da nossa população está na prostituição, pois o mercado de trabalho não nos aceita. Precisamos lutar para ter direito ao nosso nome social, usar o banheiro de acordo com a nossa identidade de gênero e para por ela sermos reconhecidxs e tratadxs. As instituições de ensino estão começando agora a nos aceitarem. Ainda assim, há casos de travestis, como a estudante de licenciatura em artes Ágatha Mont, de 26 anos, que sofreu transfobia na FMU e morreu assassinada. Muitxs só ingressaram nas universidades graças a projetos como o Transcidadania em São Paulo e o Prepara Nem no Rio. Lutamos pela normalização e humanização de nossos corpos e identidades. Direitos básicos nos são negados diariamente. Durante décadas fomos publicamente censuradas pelo Estado, por operações como “Tarântula” e “Comando de caça aos gays”, que prendiam, torturavam, espancavam e assassinavam travestis, que não podiam simplesmente circular pelas ruas. Presas, eram obrigadas a se mutilar para serem libertadas.Era proibido mencionar a palavra travesti em qualquer meio de comunicação. Claudia Celeste, em 1977, foi retirada do elenco da novela “Espelho Mágico”, na Globo. Voltou à cena só em 1988 como Dinorá, na novela “Olho por Olho”, da extinta TV Manchete, sendo a única travesti até hoje a fazer uma novela inteira. Rogéria, em seu livro “Rogéria uma mulher e mais um pouco” diz: “A censura na televisão é muito estranha”. Ela nos conta sobre esta censura desde a TV Excelsior, quando seu programa “Quem tem medo de Rogéria?”, foi retirado do ar sem explicações, ou quando outras participações foram canceladas ou vetadas. E estamos falando de Rogéria, um caso raro de visibilidade na nossa comunidade. Em 2001 a atriz e travesti Thelma Lipp foi substituída depois de ensaiar e fazer laboratórios por dois meses com a equipe do filme “Carandiru”, em que foi substituida pelo ator Rodrigo Santoro por “questões de marketing”. Thelma, que foi a resposta paulista a outro fenômeno de beleza, Roberta Close, não agüentou o baque. Acabou voltando às drogas, sofrendo depressão e terminando a vida como Deodoro. Em uma entrevista feita em 2002, Claudia Wonder, também atriz e travesti, conta que ela e Thelma Lipp planejavam realizar um trabalho junto ao Sindicato dos Artistas, para que papéis de pessoas trans fossem preferencialmente oferecidos a artistas trans. Na década de 70 nasceu a militância LGBT no Brasil, impulsionada pelas travestis organizadas, que saíram às ruas para reivindicarem e garantirem o simples direito à vida. Hoje, nós artistas trans resolvemos nos unir. Desde que nos entendemos como humanidade as minorias vem buscando seus direitos, à igualdade, a representatividade, a ter um espaço digno na sociedade. Essa luta acontece também nas Artes. Há séculos atrás só os homens cis podiam atuar no teatro, e os papeis femininos eram representados por eles, que utilizavam máscaras e vestimenta feminina. Somente a partir do século XVII, as mulheres cis passaram a dividir o palco e poder estar em cena. Mais tarde atrizes e atores negroscomeçaram a questionar por quê personagens negros eram interpretados por artistas brancos, que pintavam suas caras para representá-los, o conhecido Black Face. Nós nos perguntamos: Por que temos que aceitar que atores e atrizes cis interpretem personagens trans? Estamos na moda, na crista da onda. Quer ser moderno no teatro, cinema ou televisão? Coloque entre os personagens uma pessoa trans. É tão moderno um grupo dar visibilidade ao tema, não? Que autora maravilhosa falando sobre nós, você viu? Que filme contemporâneo com essa historia, hein? Mas quando vão escolher alguém para representar um personagem trans quem é contratado? Um ator ou atriz cis. Mas por que não chamam uma pessoa trans para fazer este personagem? Acreditam que apenas mencionar, tocar ou falar do tema garante visibilidade e um olhar diferente sobre a nossa população? Acham que assim pode diminuir a transfobia? Não existe meia representatividade. Ou se tem ou não se tem. Precisamos ser vistas, reconhecidas através de referências concretas. Será que sabem o que é crescer sem entender o que você é ou o que está acontecendo com você, por falta de um modelo a seguir? Também nos perguntamos: Por que não tem atores cis interpretando as heroínas das historias? Ou atrizes cis fazendo papel de galã? Não faz sentido, né? Então por que, quando se trata de personagens trans, convidam pessoas cis para os papéis? É liberdade artística?E sobre o ator não ter sexo? Nós artistas trans gostariamos de conhecer de perto essa tal liberdade artística. No dia em que não for mais preciso separar ou diferenciar artistas cis de artistas trans. No dia em que formos ao teatro, ao cinema ou mesmo ligarmos a televisão e virmos artistas trans interpretando personagens cis naturalmente. Nesse dia poderemos conversar sobre liberdade artística e dizer que o ator não tem sexo. No momento, estamos tentando ter o direito de entrar, de estar, de pertencer e de permanecer. A exclusão não fere a liberdade artística também? Nós artistas trans entendemos a liberdade artística de maneira ampla, geral e irrestrita, sem gênero, sem barreiras, sem amarras e sem fronteiras. Mas também entendemos a arte como instrumento libertador, questionador e símbolo de luta e resistência. E para que serve o artista, senão para refletir, questionar e falar do seu tempo? Muitas vezes não nos convidam porque o personagem em questão começa com um gênero e transiciona para o outro gênero no decorrer da historia. Então querem nos convencer de que é possível colocar um peito no Rodrigo Santoro ou uma prótese de mandíbula na Carolina Ferraz, ou que ainda podem envelhecer drasticamente Regina Duarte ou transformar Vera Holtz em uma pessoa obesa, mas que nós não podemos reconstituir o que nós já vivemos e conhecemos antes da nossa transição? E ainda, será que sabem que existem atores e atrizes que estão em transição? Alguns inclusive sem nenhum procedimento cirúrgico? Mas existem artistas trans? Mas estão preparadxs? Ou ainda: Eu já procurei e não achei. Pois sim, sempre estivemos nas artes, além das já citadas, tivemos Phedra de Córdoba, Divina Valéria, Margot Minelli, Jane di Castro e tantas, tantas outrxs. Hoje estamos aqui para dizer que sim, nós existimos. E queremos oportunidades e emprego. E perguntamos: Como podemos existir sem a inclusão? Sem oportunidades? Qual será a próxima desculpa? O ator Jeffrey Tambor, que interpreta a protagonista trans Maura Pfeffermann na série ”Transparent”, ao receber o prêmio Emmy de melhor ator disse: “Seria diferente se as pessoas trans tivessem contado suas historias há centenas de anos, mas não puderam. É um problema de verdade... espero que apareçam mais oportunidades para o talento dos transgêneros... eu gostaria muito de ser o ultimo cisgênero interpretando uma personagem transgênero. Acho que já chegamos a esse ponto”. Na mesma noite Laverne Cox, atriz e mulher trans (indicada ao Emmy de melhor atriz pela série “Orange is the new Black”) disse: ”Quero ecoar o que Jeffrey Tambor disse hoje à noite. Dêem uma chance ao talento trans. Eu não estaria aqui hoje se alguém não tivesse me dado uma chance”. Esta mesma atriz, só protagonizou “Rocky Horror Picture Show” por que o ator Adam Lambert recusou fazer o papel de protagonista alegando: “Eu senti que, em 2016, ser cisgênero e fazer um personagem trans é inapropriado. Nos anos 70 era diferente. Mas agora há uma ótima conversa sobre trans e gênero no mundo”. Não precisamos que Cauãs, Claudias, Carolinas, Luizes, Florianos, Airtons, Rodrigos, Eddies, Jeffreys entre tantos outros nos representem. Nós estamos aqui e existimos. Cansamos de servir apenas como experimentos cênicos para teatro, cinema, televisão e trabalhos acadêmicos. Queremos e precisamos de oportunidades e emprego. Este manifesto visa sensibilizar, conscientizar e humanizar: autores, escritores, dramaturgos, diretores, produtores, cineastas, assistentes, equipes técnicas, produtoras, agências de atores, SATED, publicitários, grupos, associações e coletivos artísticos, atores e atrizes cisgêneros. Tirem-nos das esquinas. Resistiremos e Lutaremos Juntxs somos mais fortes. Assinado: Movimento Nacional de Artistas Trans