Eu sou, Intersexo

A visibilidade intersexo é essencial para despertar a sociedade a respeito das cirurgias de normalização, que acontecem no país e no mundo, sem levar em consideração o futuro da criança

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A visibilidade intersexo é essencial para despertar a sociedade a respeito das cirurgias de normalização, que acontecem no país e no mundo, sem levar em consideração o futuro da criança

Por Anamaria Modesto Vieira*

Olá pessoas , tudo bem? Faz um tempinho que ando pensando em escrever sobre essa minha condição, desde que me assumi homossexual, mas nesse vai e vem da vida só hoje resolvi por isto em pratos limpos. Vou começar com minha história, depois vou apresentar algumas ideias e dados. Lembrando que não sou especialista no assunto, mas uma paciente que procura sempre aprender.

Nasci com 9 meses e alguns dias, fui uma criança problemática na questão de saúde e o Hospital das Clínicas, em São Paulo, era minha segunda casa. Fiquei um mês internada pra ganhar peso e estabilizar, já que nasci bem fraquinha. Andei com 2 anos e 6 meses de idade, aos 3 comecei a usar óculos, aos 4 já sabia o alfabeto de tanto minha mãe usar as letras pra testar a minha visão com um olho que usava tampão, aos 7 soube que não tinha o sistema reprodutor feminino e aos 10 passei a tomar hormônios femininos.

Tratada no melhor hospital do país fui crescendo sendo acompanhada pela equipe médica do Instituto da Criança e de uma mãe atenta ao meu desenvolvimento da infância à vida adulta. Aos 12 anos fui instruída a contar para minhas colegas que, como elas, teria menstruado, mas na realidade nunca vi sangue sair da região pélvica a não ser durante uma infecção urinária aos 8 anos. Aos 20 anos passei pela minha última cirurgia que fechou o ciclo de normalização e prossegui minha vida até o ano passado.

Sempre fui a responsável por cuidar dos papéis da minha casa, desde a adolescência eu guardava e sabia onde ficavam as escrituras ou as contas do mês x ou y, sempre gostei de cuidar de documentos, a não ser no momento em que precisavam daquela conta que ninguém e nem eu achava (rs). Em agosto de 2015 , eu prometi que meus 33 anos seriam diferentes, eu esclareceria minha história e procuraria me conhecer e me entender melhor e, em setembro, achei nas limpezas de papel uma carta endereçada a minha mãe de 1996. A carta apresentava meu problema médico, dava nome aos bois e junto com uma amiga passei a investigar a Síndrome de Insensibilidade a Andrógenos que só descobri aos 33 anos, depois de ser mantida em segredo pela minha mãe, e é esta a condição que se encaixa no Intersexo que passo a apresentar agora.

Intersexo: O que é?

O nome intersexo é dado ao individuo cujo o sexo biológico não pode ser definido como masculino ou feminino. Isso acontece porque os padrões genéticos do desenvolvimento fetal humano podem ser cromossomos sexuais = XY, com testículos, que desenvolve uma genitália masculina, ou XX tem ovários e genitália feminina, sendo que o intersexo é um problema de distorção congênita, cromossômica ou hormonal na criança, além disso, segundo cálculos da organização intersexual internacional, ocorre em cada 1 de 1500 crianças nascidas ao redor do globo.

SIA como condição intersexual

Como traço da congenitalidade intersexual, a SIA faz com que seus portadores completos ou parciais tenham um cromossomo X incapaz de reagir a testosterona e seus derivados que podem produzir um indivíduo com desenvolvimento genital feminino no caso da congenitalidade completa ou então ocorrer a formação de genitália de espectros entre o feminino e o masculino no caso da congenitalidade parcial (meu caso).

intersexual SIA

A Figura acima demonstra os vários tipos de genitália produzidos num indivíduo portador da síndrome. Na congenitalidade completa pode ser possível que o indivíduo cuja genitália é feminina possua testículos intravaginais. Ambas as congenitalidades podem necessitar de cirurgias de normalização para adequação do indivíduo à vida em sociedade. Normalmente, após os primeiros meses de vida, assim que entra na puberdade ou descobre o problema na vida adulta é requerido o exame que avalia os cromossomos do indivíduo, e aí se opta em conjunto com a equipe médica e a família, o gênero que mais deve se adequar a criança, o que normalmente tende a ser o feminino por ser uma cirurgia de maior facilidade de correção.

O problema ocorre tempos depois, pois a criança pode ter traumas e questões psicológicas importantes a serem tratadas, pois pode ou não se adequar ao gênero escolhido e isto é algo que deve ser levado em conta, pois, por exemplo, há casos em que se pode optar pela mudança de gênero caso a criança não se sinta menino ou menina. Em alguns países da Europa, como a Bélgica, cirurgias de normalização são proibidas para que não se cause transtornos psicológicos no futuro da criança.

Um estudo de 2011, concebido pelo centro do pacífico para o sexo e a sociedade, da Universidade do Havaí descobriu que as respostas psicológicas dos indivíduos SIA com relação à doença eram relacionadas ao sigilo, ao estigma e a vergonha, a sentir-se diferente das outras pessoas, em geral, preocupações em relação à infertilidade, à identidade e suas resoluções, quanto a masculinidade e a feminilidade. Quanto aos indivíduos com congenitalidade parcial, 61% dos entrevistados consideraram suicídio e 17% tentaram se matar. Eu me encaixo nesse perfil, tive questionamentos quanto a minha feminilidade já que não consigo me maquiar ou usar brincos, algo tão comum a maioria das mulheres e tido como ornamentos do feminino e que 56% das entrevistadas mulheres, na pesquisa, tiveram que trabalhar para se produzir como uma mulher feminina, além de não ter passado pelos ritos de passagem da mulher adulta como menstruar ou engravidar. Eu, por não me aceitar ou me compreender, tentei 3 vezes suicídio, parando de tomar hormônios essenciais para minha sobrevivência (segundo os médicos). Como fruto de todo esse processo SIA, ainda me sinto uma pessoa indefinida, talvez por traços psicológicos impressos pela doença ou por não me sentir ajustada socialmente.

Para mim, a visibilidade intersexo é essencial para despertar a sociedade a respeito das cirurgias de normalização, que acontecem no país e no mundo, sem levar em consideração o futuro da criança. O corpo e psiquê humana são estruturas variadas e sábias, acredito na necessidade da conscientização da sociedade para olhar o corpo, mesmo com seus defeitos, mas uma sabedoria própria e intrínseca. Um exemplo disso foi o filme que me chocou por questionar a binaridade sexual presente em nossa sociedade e a tendência de normatização pela via médica. XXY, um filme de Lúcia Puenzo, com o fantástico Ricardo Darin, provocou-me a pensar que o corpo pode ter suas próprias escolhas com influências químicas ou ambientais, mesmo que a genética básica não o defina ou então aceitarmos a condição de intersexualidade que transcende a binaridade e provoca um trânsito que pode ser saudável tanto física como mental para o indivíduo.

Ainda estou em processo de aceitação da minha história e do meu corpo, mas faço da minha história um alerta para as mães e crianças do presente e do futuro não sofrerem os danos causados pelo sigilo, a desconfiança, a escolha prévia que alteraram para sempre o rumo da minha história.

Conheça mais nos links abaixo e me pergunte se quiser:

https://www.facebook.com/visibilidade.intersex

Filme XXY e a questão da Binaridade sexual http://editorialpaco.com.br/a-licao-de-alex-em-xxy-desnaturalizando-o-binarismo-sexual/

Imagem e infos sobre a parte psicológica relacionada ao AIS:http://www.hawaii.edu/PCSS/biblio/articles/2000to2004/2004-ais-and-klinefelters.html

* Socióloga, leitora, ama bom papo e boa música. Original aqui.