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"É na rua que estão as travestis, os michês e as bichinhas pegadeiras. Eles é que são as maiores vítimas de violência anti-LGBT, mas são também o 'lado oculto do arco-íris'. A parte excluída de um movimento que – teoricamente – luta por igualdade, respeito à diversidade e inclusão"
Por Fabricio Longo, d'Os Entendidos
Farme de Amoedo, Ipanema. O sol se encaminha lentamente para o morro Dois Irmãos, enquanto as bandeiras arco-íris colorem a areia. Nesse pequeno paraíso cor de rosa, corpos sarados brilham em minúsculas sungas importadas enquanto a troca de olhares só é superada pelas fofocas sobre o último fim de semana. Tudo na mais perfeita ordem, quando aquele gay chato, metido a politizado, comenta alguma coisa sobre a criação de um abrigo para moradores de rua homossexuais…
“Ah, não precisa disso não! É mais segregação, preconceito… Será que nunca seremos tratados como iguais?” – pergunta, indignado, o coleguinha discreto enquanto aplica no rosto uma porção generosa de sunscreen UV Essentiel by Chanel.
Não… Não seremos.
É fácil indignar-se com a “segregação” promovida por políticas públicas e por discursos ativistas quando não há a sensação de que somos contemplados por eles. É fácil questionar a relevância da parada gay, fazer meia dúzia de comentários chocados no último relato de homofobia, para depois voltar a escolher a pomada do topete ou o boy que está a 2 km de distância. Difícil é estar na rua.
É na rua que estão as travestis, os michês e as bichinhas pegadeiras. Eles é que são as maiores vítimas de violência anti-LGBT, mas são também o “lado oculto do arco-íris”. A parte excluída de um movimento que – teoricamente – luta por igualdade, respeito à diversidade e inclusão. Mas também, ninguém mandou esse povo ficar se expondo, não é mesmo?
É óbvio que qualquer medida de proteção às pessoas LGBT – especialmente em situação de fragilidade, como é o caso dos moradores de rua – é necessária. Ser “gay” fora do gueto não é fácil e parece que a comunidade não reconhece isso. Não é por acaso que quase todo relato de agressão feito por usuários do Facebook tem o clichê de “você nunca pensa que vai acontecer contigo”. Não pensamos mesmo. Estamos seguros em nossas praias, em nossas boates, atrás de nossos computadores, de nossas graduações, de nossos empregos fixos, de nossa bagagem cultural e até de nossa última viagem à Argentina.
Fala-se em “orgulho e preconceito” como experiências abstratas ou o nome de um livro, nas areias de Ipanema ou entre os goles de um café gourmet, antes da sessão daquele filme europeu super incrível que só o festival de cinema foi capaz de trazer. De repente, esses assuntos até servem para conquistar aquele cara mais “cabeça”, que é do tipo “pra namorar”, vai que…
São coisas distantes.
Será que um mendigo homossexual se reconhece como tal? Essa identidade – gay – é possível fora de um modelo de consumo? É óbvio que existem moradores de rua com atividades homossexuais, mas isso não significa necessariamente que eles se reconheçam dessa forma ou que se relacionem exclusivamente assim. Se uma pessoa precisa se preocupar em conseguir um teto ou algum papelão para passar a noite, rezando para não ser queimado vivo, tem cabeça para pensar em algum tipo de “identidade sexual”? E em caso afirmativo, não estaria exposta a outros níveis de exclusão e violência – inclusive sexual – precisamente por isso?
O movimento LGBT tem coisas maravilhosas e o ORGULHO certamente é uma delas. Precisamos nos orgulhar dos avanços conquistados e das muitas lágrimas choradas, mas também tomar a coragem para investigar e para reconhecer nossos problemas. Não há como alimentar a ilusão de inclusão quando só temos respeito se formos “branquinhos”, “limpinhos” e principalmente, “riquinhos”.
Uma comunidade que se deixa definir por status e que se perde com o escapismo promovido por “divas” importadas, que torce o nariz para certos “tipos de gay”, e que chega ao extremo de criar termos de exclusão como “pão com ovo” e “poc-poc”, não pode reclamar de ser tratada como diferente.
Somos diferentes e seguimos alimentando essas diferenças – inclusive entre nós – para definir quais pessoas e quais comportamentos serão considerados dignos e indignos. Excluímos e oprimimos tanto quanto nossos agressores, talvez ao buscar construir uma imagem ideal – e “limpa” – de um segmento que nem se entende e nem se respeita, como se o respeito fosse privilégio de quem merece. E pior ainda, de quem pode pagar!
Será que a sociedade trataria da mesma forma a bicha mendiga que pede abrigo à prefeitura e o boyzinho fashion recém-chegado de Ibiza? É pouco provável. Talvez seja por isso que seguimos em nossas gayolas de cristal, assistindo de camarote enquanto outros LGBT – iguais a nós, não só pela sexualidade, mas por serem humanos – seguem sumindo nas grandes cidades. Uns ainda terminam em algum abrigo, quando conseguem escapar da vala, mas quem se importa? Semana que vem chega o novo iPhone.
Quanta pobreza!