CONSUMO DE ÁLCOOL

O protagonismo feminino no ciclo da Lei Seca

Movimento liderado por mulheres deu origem à proibição do álcool nos EUA — e também foi decisivo para sua queda

Escrito em História el
Jornalista que atua em Brasília desde 1995, tem experiência em redação, em comunicação corporativa e comunicação pública, em assessoria de imprensa, em produção de conteúdo, campanha política e em coordenação de equipes. Atuou, entre outros locais, no Governo Federal, na Presidência da República e no Ministério da Justiça; no Governo do Distrito Federal, na Secretaria de Comunicação e na Secretaria de Segurança Pública; e no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
O protagonismo feminino no ciclo da Lei Seca
O protagonismo feminino no ciclo da Lei Seca. Movimento liderado por mulheres deu origem à proibição do álcool nos EUA — e também foi decisivo para sua queda. Fotomontagem (Wikipedia e Getty Images)

O movimento pela temperança surgiu nos Estados Unidos no início do século XIX como uma campanha moral e social pela moderação no consumo de bebidas alcoólicas. Com o tempo, seus defensores passaram a pregar a abstinência total e, posteriormente, a proibição legal do álcool — caminho que culminou na Lei Seca, décadas depois.

Diversas motivações impulsionaram o movimento. A violência doméstica era uma das principais: muitas mulheres denunciavam o alcoolismo dos maridos como causa direta da agressividade, da miséria familiar e da instabilidade nos lares. Assim, a temperança foi abraçada por grupos femininos como uma forma de proteção à vida doméstica.

Outro argumento central era a associação entre o consumo de álcool e a pobreza urbana. O álcool era visto como fator de desordem social nas cidades industriais, afetando especialmente trabalhadores e imigrantes recém-chegados, que enfrentavam jornadas exaustivas, baixos salários e condições precárias de vida.

O discurso religioso também teve papel importante. Igrejas protestantes, sobretudo metodistas e batistas, viam o álcool como um pecado que ameaçava a ordem divina e os valores familiares. Para esses setores, a sobriedade era um imperativo moral e espiritual.

Por fim, o movimento pela temperança abriu espaço para o protagonismo feminino. Excluídas do direito ao voto e da política institucional, milhares de mulheres encontraram nesse ativismo uma forma de atuação pública e mobilização social.

O papel das mulheres

As mulheres desempenharam um papel central no movimento pela temperança — e não por acaso. Para muitas delas, o lar era um espaço a ser protegido, mas que se tornava vulnerável diante do alcoolismo masculino, frequentemente associado à violência doméstica, à instabilidade financeira e à degradação familiar.

Organizações como a Woman’s Christian Temperance Union (WCTU) canalizaram essa preocupação para uma pauta reformista mais ampla, conectando a temperança a causas como o sufrágio feminino, a educação moral, a assistência social e a valorização da família. A WCTU foi uma das primeiras instituições a permitir que mulheres atuassem publicamente como agentes políticas em uma sociedade que ainda lhes negava o direito ao voto.

Já a Anti-Saloon League, fundada em 1893, adotava uma postura mais radical: lutava abertamente pela proibição legal da produção e venda de bebidas alcoólicas. Sua atuação foi decisiva para a aprovação da 18ª Emenda da Constituição dos EUA, que instaurou a Lei Seca em 1920.

Da mobilização à proibição: a Lei Seca

O desfecho mais emblemático da mobilização liderada por mulheres foi a aprovação da 18ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, em 1919, que proibiu a fabricação, venda e transporte de bebidas alcoólicas em todo o território nacional. A proibição entrou em vigor no início de 1920, com a promulgação do Volstead Act, legislação que regulamentou a chamada Lei Seca.

A medida foi celebrada como uma vitória moral por grupos religiosos protestantes, setores conservadores e pelas ativistas femininas, que viam na eliminação do álcool um passo essencial para proteger a família, combater a violência doméstica e regenerar a sociedade norte-americana.

Por que a Lei Seca fracassou?

Apesar das boas intenções, a Lei Seca gerou efeitos colaterais profundos e inesperados. Em vez de eliminar o consumo de álcool, a proibição fomentou a ilegalidade. Com a restrição à produção e venda legal de bebidas, o consumo migrou para o mercado clandestino. Cidades de todo o país testemunharam a proliferação dos speakeasies, bares secretos onde o álcool era vendido ilegalmente.

Esse cenário favoreceu o crescimento do crime organizado, com gangues como a de Al Capone, em Chicago, acumulando fortunas por meio do contrabando de bebidas. A repressão ineficaz e a impunidade alimentaram uma onda de corrupção entre policiais e autoridades públicas, que frequentemente eram subornadas para proteger os negócios ilícitos.

Outro fator crítico foi a queda drástica na arrecadação de impostos sobre bebidas alcoólicas. Antes da proibição, cerca de 70% da receita federal provinha desses tributos, especialmente sobre uísque, vinho e cerveja. A Lei Seca eliminou essa importante fonte de financiamento do Estado.

Com a chegada da Grande Depressão, em 1929, o governo enfrentou falências em massa, desemprego recorde e demandas crescentes por políticas sociais. A manutenção da proibição, nesse contexto, passou a ser vista não só como moralmente controversa, mas também como economicamente insustentável.

Estados e cidades pressionaram pela revogação como forma de recuperar receitas perdidas, reativar empregos e retomar o controle sobre a segurança pública. A escalada da violência urbana, da corrupção estatal e da crise fiscal abriu caminho para a 21ª Emenda, aprovada em 1933, que revogou oficialmente a Lei Seca. O presidente Franklin D. Roosevelt sancionou a emenda, pondo fim à era da proibição.

As mulheres e o fim da Lei Seca

Curiosamente, as mulheres também desempenharam papel essencial na revogação da Lei Seca. A mesma energia política que impulsionou a proibição foi redirecionada, por outras lideranças femininas, para combatê-la. Um dos principais marcos desse reposicionamento foi a criação da Women’s Organization for National Prohibition Reform (WONPR), em 1929.

Fundada por Pauline Sabin, influente republicana e integrante da elite nova-iorquina, a WONPR reuniu milhões de mulheres de diferentes origens sociais e políticas. Elas argumentavam que a Lei Seca corroía o respeito às leis, alimentava o crime e retirava do Estado uma fonte vital de receitas — especialmente em meio à crise da Grande Depressão.

A atuação da WONPR provou que as mulheres não foram apenas fiadoras da moral conservadora, mas também defensoras pragmáticas da reforma institucional e da liberdade civil. Sua mobilização foi crucial para o sucesso político da 21ª Emenda e permanece como um exemplo da força do ativismo feminino em momentos-chave da história dos Estados Unidos.

As Damas da Contravenção

Kirn Vintage Stock/GettyImages

Na véspera do Ano-Novo de 1919, os Estados Unidos se preparavam para entrar oficialmente na era da Lei Seca, que proibiria a fabricação e venda de bebidas alcoólicas a partir de 17 de janeiro de 1920. Embora muitos acreditassem que o país substituiria o álcool por refrigerantes e chicletes, a realidade revelou um mercado clandestino bilionário comandado por figuras como Al Capone — e, surpreendentemente, por várias mulheres.

Apesar do preconceito da época, que via o contrabando como domínio masculino, muitas mulheres foram protagonistas desse submundo. Algumas usavam suas roupas em camadas para esconder bebidas e aproveitavam o fato de que policiais homens não podiam revistá-las. Estima-se que havia cinco contrabandistas mulheres para cada homem.

Entre as mais notórias estavam:

  • Gertrude “Cleo” Lythgoe, que operava uma frota de navios do Caribe até Nova York e se tornou celebridade nos jornais;
     
  • Mary Louise Cecilia “Texas” Guinan, estrela de Vaudeville que transformou clubes ilegais em pontos de encontro de celebridades;
     
  • Besha “Bessie” Starkman-Perri, que fundou um império do álcool com o parceiro Rocco Perri no Canadá;
     
  • “Moonshine Mary” Wazeniak, condenada por vender bebida tóxica que matou um cliente em Illinois;
     
  • “Spanish Marie” Waite, que comandou 15 barcos entre Cuba e a Flórida e virou mecânica após o fim da Lei Seca;
     
  • Mary Dowling, empresária do uísque que mudou sua destilaria para o México com ajuda da família Beam;
     
  • Elise Olmstead, ex-espiã britânica que virou radialista e cúmplice do marido contrabandista nos EUA;
     
  • Gloria De Caseras, chamada de “rainha sem país”, comanda uma frota de navios, mas termina deportada e desaparece dos registros.

Essas histórias desafiam o imaginário tradicional da Lei Seca e revelam o protagonismo feminino em atividades que mesclavam astúcia, coragem e negócios em plena repressão. Elas não apenas lucraram com a ilegalidade, como também enfrentaram tribunais, polícias e preconceitos, deixando legados que só recentemente ganharam destaque histórico.

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