Foi-se a Suprema Corte. Serão, por baixo, uns 30 anos de domínio conservador na instância máxima da justiça norte-americana. Por 52 votos a favor e 48 contra, a maioria republicana impôs ao país a juíza Amy Barrett, conhecida pelas posições contrárias ao direito ao aborto, entre outros. Não é pouca ironia o fato dela ocupar, a partir de agora, a cadeira de uma grande defensora dos direitos da mulher, como foi a juíza Ruth Ginsburg. É um escárnio. Um tapa na cara e um alerta: ou os progressistas se organizam ou vai ser impossível reconquistar os espaços de poder nesse país.
A luta pela presidência da república, em fase final, é apenas parte desse processo. Mas sozinha não dita regra alguma. E faz décadas que as forças mais conservadoras do país sabem disso e se organizaram para tomar todo e qualquer espaço disponível. O aparelhamento dos conselhos tutelares, no Brasil, é repeteco da estragégia norte-americana. Disciplinados e focados, os conservadores religiosos se uniram com quem foi necessário para atingir seus objetivos. Ou alguém acha que Trump realmente comunga, moral e religiosamente, dos preceitos evangélicos?
Para eles, não vem ao caso o que Trump faz em casa, na vida pessoal, nem mesmo o que ele pensa ou como se comporta. O que importa é que ele abriu o espaço da batalha moral para esses conservadores. Agora, a tarefa dos democratas é desfazer esse avanço para barrar alguns casos em instâncias inferiores, impedindo que eles cheguem à Suprema Corte.
Com uma disciplina que ninguém poderia imaginar que tivesse, desde o primeiro dia no cargo Trump fez todas as indicações que tinha direito de fazer para o judiciário do país. O lema da administração dele sempre foi “não deixar cadeira alguma vazia”. Foi uma estratégia desenhada e implementada pelo ultra conservador Mitch McConnell, líder da maioria republicana no senado.
Trump não indicou apenas 3 juízes para a Suprema Corte (dois deles na marra porque McConnell se recusou a marcar sabatina da indicação de Obama 9 meses antes da eleição e agora marcou a sabatina da indicada de Trump durante o processo eleitoral). Contando com esses três, o atual republicano conseguiu empossar 220 juízes federais de diferentes áreas. Muitos nomes foram para os tribunais de apelação e para as chamadas Cortes de Circuito nas quais os juízes viajam por diferentes locais e onde a grande maioria dos casos mais polêmicos do país tramitam, como a discussão do programa de saúde, questões ambientais e regulamentações governamentais.
Enquanto os democratas estavam preocupados em brigar pelas vagas na câmara, no senado e em disputar a Casa Branca, os republicanos se dedicaram a ocupar as posições onde se exerce o poder e onde se implementam as mudanças. O judiciário é hoje o poder que arbitra os desentendimentos e o convívio mais amplo da sociedade. Toma, cada vez mais, um espaço que deveria ser o da discussão política. Enquanto os representantes eleitos, sejam democratas ou republicanos, se preocupam em satisfazer as vontades dos doadores de suas campanhas e se dobram aos lobbies bilionários que atuam livremente no congresso, o judiciário vai decidindo o futuro da população.
É o que Amy Barrett se prepara para fazer daqui para frente. Com certeza, vai julgar se o programa de saúde do governo Obama, um pequeno avanço nesse país de primeiro mundo com saúde de terceiro, feriu a constituição. Ela, já se sabe, acredita que a lei que descriminalizou o aborto é uma aberração quando lida à luz da constituição. Amy Barrett é o que se chama, no jargão jurídico norte-americano, uma originalista. Isso significa olhar para a constituição do país como uma lei, um texto que não deve ser interpretado de acordo com as mudanças históricas e culturais cujo “significado não muda com o tempo”, como explicou durante a sabatina.
Não importa que a constituição tenha sido escrita em uma época que considerava a escravidão, por exemplo, parte normal da vida em sociedade. O advogado Lori Lightfoot explicou bem ao jornal britânico The Guardian: “pergunte a um gay, uma mulher negra, se eles são originalistas”. Já que a constituição não considerou gays, negros e mulheres como pessoas, não dá para ser originalista. Essas pessoas não tinham direito de voz e voto, para começar. Não podiam discutir e influenciar os debates nacionais e a adoção de leis.
Mas o primeiro caso que promete cair nas mãos da juíza indicada por Trump pode ser justamente a respeito da apuração dos votos nessa eleição. Vai ter briga na justiça em mais de um estado, briga que pode parar na Suprema Corte, onde Trump espera contar com o apoio das togas que empossou para o resto da vida. A única maneira de enfrentar o retrocesso que se avizinha é tomar o Chile como exemplo. E colocar muita, mas muita gente mesmo, nas ruas.