Nos primeiros anos após me mudar para a China, em 2015, passei mais tempo em Pequim e a maioria das minhas viagens foram para províncias vizinhas, no norte do país. A única província do sul que tive oportunidade de conhecer melhor foi Fujian, que visitei em 2016 e 2017. A província me encantou de uma maneira especial, pois foi lá que tive meu primeiro contato com muitos elementos da cultura chinesa e e comecei a descobrir o quão rica e diversa é essa civilização milenar.
Fujian rapidamente tornou-se um dos meus lugares favoritos na China, embora minha experiência da província tenha sido limitada quase que totalmente à cidade de Fuzhou, onde passei um total de quase duas semanas durante meus dois primeiros anos no país. Visitei Quanzhou de passagem, em 2016, ficando menos de um dia na cidade.
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Embora tenha gostado muito da província, fiquei vários anos sem visitá-la. Foi somente no ano passado, durante o feriado do Ano Novo Chinês, que retornei a Fujian, desta vez para Xiamen, para passar alguns dias. E em maio deste ano fui a Xiamen e Quanzhou, o que me permitiu conhecer melhor a província e avaliar seu desenvolvimento.
Campeã em preservação ambiental
Durante meus dois primeiros anos em Pequim, a poluição do ar era severa a ponto de eu sentir falta de ver o céu azul. Foi somente em 2017, quando eu completava dois anos de China, que passei a notar uma melhora significativa na qualidade do ar, e recentemente o governo de Pequim divulgou um relatório que aponta que em 2024 a cidade, pelo quarto ano consecutivo, atingiu os padrões de qualidade do ar e teve apenas dois dias de poluição severa.
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Naqueles anos em que o ar de Pequim e das províncias vizinhas era muito poluído, viajar para Fujian era uma rara oportunidade de respirar ar puro: a província sempre foi uma das campeãs da China em proteção ambiental, cobertura vegetal nativa, qualidade do ar e da água, além de diversos outros quesitos ambientais.
Uma das cenas marcantes da minha primeira visita a Fujian foi quando vi um riacho correndo no centro da cidade de Fuzhou e fiquei impressionado com a água cristalina que me permitia ver os pedregulhos no fundo do leito e os peixes nadando, algo raro em uma grande cidade de qualquer país.
Um fator que torna Fujian campeã em indicadores ambientais, e isso fiquei sabendo só recentemente, é seu relevo montanhoso, cheio de terrenos íngremes com florestas e solo pedregoso, somente em algumas áreas, como as regiões costeiras e planícies, o solo mostra-se mais adequado à agricultura.
E por falar em agricultura, Fujian é famosa por seus chás, cuja exportação foi tamanha que a palavra chá no dialeto local acabou dando origem ao nome pelo qual o produto é conhecido em diversas línguas, como o termo inglês tea e o espanhol.
Fujian também se destaca na produção de frutas tropicais. Aliás, foi lá que vi goiaba, carambola, caju e nêspera pela primeira vez na China, e toda vez que vou a Fujian mato a vontade de comer essas frutas menos populares aqui no norte do país.
Terra de “homens de negócios”
As mesmas características geográficas que contribuíram para preservar tão bem o meio ambiente da província também determinaram uma culinária rica em frutos do mar, alimentos abundantes na região costeira, e o desenvolvimento do comércio exterior como característica marcante da província.
Aliás, o catchup, um dos condimentos mais populares do mundo, tem origem em Fujian: o nome originalmente designa um molho de peixe fermentado que caiu no gosto dos estrangeiros que negociavam especiarias nos portos da província. A receita foi sendo adaptada no exterior até chegar à versão atual, que adotou o tomate ao invés do peixe para baratear o produto e torná-lo mais doce.
Há séculos, muitas famílias fujianesas começaram a enviar seu filho primogênito ao exterior para facilitar o comércio com a China, o que cria oportunidades para os que ficam em solo chinês, e hoje em dia boa parte dos chineses que vivem no exterior são originários de Fujian.
Estudos sobre a diáspora chinesa apontam que 90% dos imigrantes e descendentes de chineses no exterior são oriundos de apenas quatro províncias da costa sudeste da China: Guangdong, Fujian, Hainan e Zhejiang. Essas quatro províncias possuem uma forte tradição comercial que inclui o comércio exterior.
Fujian destaca-se por sua forte cultura mercantil ligada à antiga Rota Marítima da Seda, por sua cultura empreendedora e pela estratégia de criação de redes de negócios marcadas por uma forte solidariedade, com cada fujianês ajudando os demais a prosperar. Muitos começaram com pequenos negócios e se tornaram magnatas.
Entre os chineses das demais províncias citadas, os de Guandong costumam focar no comércio tradicional; os de Zhejiang têm uma cultura de negócios familiares e manufatura, com uma abordagem diversificada e inovadora; e os de Hainan investem principalmente em turismo, imóveis e comércio de frutas tropicais e frutos do mar com o sudeste asiático.
Mesmo focando em negócios tradicionais, como restaurantes, lojas e importação e exportação, muitos fujianeses obtiveram extraordinário sucesso. Um bom exemplo é Chen Jiageng, empresário e filantropo nascido em Xiamen que se mudou para Singapura aos 17 anos para facilitar os negócios de sua família, que vivia do comércio de arroz.
Chen diversificou os negócios e ergueu um império comercial, tornando-se um dos homens mais ricos do sudeste asiático. Após enriquecer, criou o Banco dos Chineses do Ultramar para ajudar os comerciantes chineses, fundou escolas na China e em Singapura em sinal de sua gratidão tanto para com seu país natal quanto para o país estrangeiro que o acolheu, e fundou a prestigiada Universidade de Xiamen, listada entre as melhores da China e do mundo.
Mas o caso de Chen não é isolado: diversos bens públicos e iniciativas de promoção do bem-estar social na província foram custeados com doações de fujianeses no exterior. Eles mantém uma profunda ligação com a terra natal, para onde a maioria costuma retornar após se aposentar.
O mais belo campus universitário da China
Ao fundar a Universidade de Xiamen, Chen Jiageng insistiu na construção de um campus que fosse não apenas funcional, mas também belo. O campus foi construído próximo à praia e com uma bela arquitetura eclética que combina telhados típicos da arquitetura sul-fujianesa com as colunas neoclássicas e varandas amplas do colonial europeu e as estruturas funcionais do modernismo chinês.
Cheio de belos jardins e espaços de lazer, o campus tornou-se uma atração turística de Xiamen, cuja visita pode ser combinada com a praia de Baoshan e o templo de Nanputuo, duas atrações imperdíveis da cidade.
A universidade conta inclusive com um museu onde os visitantes podem conhecer a história da universidade construída com doações de chineses do ultramar e doada ao poder público em 1937. Diante do museu, construído em um dos icônicos prédios centenários do campus, está a estátua de Chen Jiageng, cujo exemplo ainda hoje inspira muitos chineses tanto a ser arrojados nos negócios como a contribuir com a sociedade.
Perto dali encontrei uma estátua do escritor Lu Xun (1881-1936), considerado pai da literatura chinesa moderna. Lu Xun lecionou história da literatura chinesa e ficção moderna naquele campus em 1926. A estadia em Xiamen durou apenas quatro meses, mas deixou marcas profundas: foi lá que o escritor escreveu parte de sua obra Ervas Silvestres.
Quanzhou e a cultura da Rota Marítima da Seda
Na minha primeira visita a Fujian, em 2016, passei menos de um dia em Quanzhou, mas fiquei muito curioso em conhecer melhor aquela cidade que me pareceu tão única e especial com seus telhados de cerâmica colorida, madeiramentos cheios de belas e delicadas esculturas, fachadas com padrões únicos e paredes feitas de conchas.
Quanzhou é uma daquelas cidades que nos causam uma impressão profunda por ter uma beleza e riqueza histórico-cultural que lhe é única, herança de um dos portos mais importantes do mundo durante as dinastias Song (960–1279) e Yuan (1271–1368). Em 2021, a UNESCO reconheceu Quanzhou como Patrimônio Mundial devido ao seu papel histórico como um grande centro de comércio e trocas culturais.
Dessa vez tive a sorte de ficar três dias na cidade e conhecê-la melhor. O centro histórico da cidade tem uma vibrante vida noturna, mas que só vai até as 22h. Visitando as lojinhas, fica evidente a evolução do turismo na cidade: abundam lojas de lembrancinhas e especialidades locais, oferecendo uma diversidade de itens para todos os gostos.
Também assisti a um espetáculo de nanyin, também conhecida como Nanguan, um dos estilos mais antigos de música tradicional chinesa, com história de mais de mil anos. Esse estilo musical originário da região de Quanzhou nas dinastias Han (202 a.C.-220 d.C.) e Tang (618-917) conserva elementos da música tocada nas cortes chinesas na antiguidade e em 2009 foi inscrito na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.
Além disso, a música nanyin incorpora instrumentos musicais pouco tradicionais, como as tábuas de ritmo – placas de madeira usadas para marcar o ritmo da música, geralmente tocadas pelo cantor principal, e o som agudo da percussão com taças de porcelana, que refletem a origem popular da música nanyin, oriunda da improvisação sonora com itens usados no dia a dia.
Outra tradição cultural imperdível são as apresentações de marionetes. Com uma habilidade incrível, os artistas manipulam os bonecos para que façam expressões faciais, andem, corram, pulem e façam coisas que nos surpreendem, como abrir uma mala, segurar objetos, vestir uma máscara e até mesmo andar de bicicleta!
A evolução do Bairro Tradicional Wudian
Durante a minha rápida visita a Quanzhou em 2016, visitei o Bairro Tradicional Wudian, que o governo local havia transformado em destino turístico um ano antes. Na ocasião fui informado sobre os projetos de restauro e revitalização para conservar a arquitetura tradicional do bairro. Muitos imóveis estavam em reforma e em um trecho tivemos que andar sobre tapumes em meio ao barro.
Achei muito esquisito estar num local turístico sem turistas. A vida era como a de um bairro residencial qualquer, com comércio voltado principalmente às necessidades dos moradores. Lembro-me das mulheres locais sentadas diante de suas casas conversando enquanto abriam conchas para extrair as ostras e vendê-las. Boa parte dos homens do bairro dependiam da pesca, deixando às suas esposas a tarefa de limpar e vender os pescados.
Fiquei encantado com o templo de Cai, construído no século XVI pela família Cai, de mercadores influentes na Rota da Seda Marítima. Elementos do budismo, taoismo, confucionismo e cristianismo se mesclam naquele templo, revelando o sincretismo religioso e o rico caldo cultural proporcionado pelas trocas com mercadores do mundo todo.
Wudian é um dos conjuntos arquitetônicos mais bem preservados da cultura Minnan, também conhecida como Hokkien, mas naquela visita senti que o local se assemelhava muito mais a um bairro residencial típico, com uma comunidade tradicional que vive ali há gerações.
Outra coisa que me chamou a atenção foram as paredes feitas com conchas de ostras, algo bem típico de Quanzhou e, em especial, deste bairro antigo. A prática consiste em incrustar as conchas ao reboco da parede, uma forma criativa de baratear a construção e tornar a estrutura mais resistente a tufões e umidade.
O legado arquitetônico não atraía os jovens do bairro: sem perspectivas de trabalho e melhor renda e em busca de mais conforto e um estilo de vida moderno, eles acabavam se mudando para prédios de apartamentos em outras áreas da cidade com melhor perspectiva econômica, enquanto o legado arquitetônico de seu bairro de origem se deteriorava.
Foi aí que o governo local, em 2012, decidiu apostar no turismo como estratégia para preservar o legado histórico daquele conjunto arquitetônico – que desde 2021 faz parte do sítio histórico tombado pela UNESCO – e ao mesmo tempo gerar oportunidades de emprego e renda para os moradores.
Ao voltar ao bairro este ano, tomei um susto com a transformação: houve um enorme desenvolvimento do comércio e os turistas estavam em toda parte, posando para fotos com trajes tradicionais chineses e com flores espetadas no cabelo, técnica que é um patrimônio cultural imaterial de Quanzhou.
Durante minha visita em 2016, o Templo de Cai era pouco visitado e diante dele senhoras locais limpavam suas ostras ou vendiam frutos do mar. Agora o entorno do templo é um lugar agitado, cheio de turistas com flores no cabelo posando para fotos ou fazendo lives nas redes sociais. Muitas daquelas senhorinhas que antes vendiam peixe agora se ocupam de maquiar e prender as flores nos cabelos de turistas.
A estrutura para receber turistas melhorou muito e o turismo provou-se essencial para aumentar a renda dos moradores, gerar empregos localmente e preservar a herança arquitetônica. Por outro lado, senti falta do ambiente tranquilo e da vizinhança conversando nas ruas. Aquele ambiente pacato do velho bairro residencial se perdeu para sempre, mas havia alternativa? Agora que o bairro virou moda, muitos jovens que haviam ido embora de lá retornaram para trabalhar com turismo.
O bairro está mais bonito e a arquitetura foi restaurada em todo seu esplendor. E nas imediações da área turística ainda se vê algumas senhoras nas ruas tranquilamente cuidando de suas ostras.
* Rafael Henrique Zerbetto é editor estrangeiro do Centro Ásia-Pacífico do China International Communications Group. Jornalista brasileiro, reside em Pequim, capital nacional da China, há nove anos.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum