Durante sua segunda visita à China em pouco mais de dois anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou, ao lado da ApexBrasil, um novo pacote de investimentos chineses no Brasil, totalizando R$ 27 bilhões.
Mais do que números, os acordos prometem transformar setores estratégicos da economia nacional, com impactos que vão da geração de energia ao delivery de comida e à cadeia de distribuição farmacêutica.
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Um dos destaques é a chegada da gigante chinesa de entregas Meituan, que estreará no mercado brasileiro por meio do aplicativo Keeta, com um investimento inicial de R$ 5 bilhões.
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A empresa pretende disputar espaço com líderes como iFood e Rappi, oferecendo maior concorrência, serviços mais eficientes e taxas reduzidas para entregadores. A estimativa é de até 100 mil empregos indiretos no país e a criação de uma central de atendimento no Nordeste, com até 4 mil vagas diretas.
Uma superplataforma que mudou a China
Fundada em 2010, a Meituan começou como um site de compras coletivas e evoluiu rapidamente para se tornar um dos superapps mais influentes da China. A plataforma integra serviços como delivery de comida, reservas em restaurantes, compra de passagens, agendamento médico, contratação de serviços domésticos e pagamentos digitais — tudo em um só aplicativo.
A Meituan transformou os hábitos de consumo dos chineses. Hoje é comum pedir refeições, café da manhã ou chá da tarde pelo app, substituindo o preparo em casa. A empresa estabeleceu o padrão de entrega em até 30 minutos, que influenciou tanto o setor de restaurantes quanto o planejamento urbano — com janelas de coleta específicas para entregadores e infraestrutura voltada ao delivery.
Durante a pandemia de Covid-19, a Meituan foi essencial no abastecimento de milhões de pessoas em lockdown, entregando alimentos e medicamentos. Essa infraestrutura se estende para além da alimentação: a Meituan realiza também agendamentos médicos, reservas em hotéis, serviços de manutenção e transporte.
A engrenagem por trás do delivery de alta velocidade
A logística urbana da Meituan é uma das mais sofisticadas do mundo. Operando com base em algoritmos de roteirização em tempo real, a plataforma distribui pedidos conforme localização, tráfego, clima e tempo de preparo. Um sistema preditivo de inteligência artificial antecipa picos de demanda e posiciona entregadores próximos de potenciais zonas de pedidos — mesmo antes que eles aconteçam.
Com apoio de governos locais, a Meituan ajudou a criar infraestruturas específicas: zonas de coleta em restaurantes, áreas de descanso com Wi-Fi e água para entregadores, e robôs autônomos em locais de baixo tráfego. Em áreas-piloto, a empresa já utiliza drones e veículos automatizados para entregas de última milha.
O padrão de entrega em 30 minutos impulsiona um sistema veloz e pressionado. Por isso, a plataforma monitora rotas em tempo real, estabelece metas rígidas e, até recentemente, penalizava atrasos. Essa lógica de produtividade extrema foi alvo de fortes críticas em 2021, levando o governo chinês a intervir.
Regulação estatal e reequilíbrio social
Após denúncias de exploração de trabalhadores, o governo chinês impôs uma série de medidas regulatórias às big techs, com foco em plataformas de entrega como Meituan e Ele.me. As exigências incluíram:
- Transparência nos algoritmos e metas ajustáveis;
- Explicações acessíveis aos trabalhadores sobre como são calculadas as entregas e a remuneração;
- Cobertura de seguro contra acidentes, saúde e aposentadoria;
- Pausas obrigatórias, limite diário de corridas e proteção contra penalizações por atrasos fora do controle do entregador.
Em resposta, a Meituan criou um fundo de assistência aos entregadores, instalou zonas de descanso em grandes cidades e reformulou seu sistema de bônus para torná-lo mais justo. Essas ações integram a estratégia nacional chinesa de “prosperidade comum”, que visa reduzir desigualdades e melhorar as condições dos trabalhadores digitais.
Economia de plataforma e trabalho por aplicativo
A Meituan é símbolo da chamada economia de plataforma, modelo baseado na intermediação digital entre prestadores de serviço e consumidores. Nessa lógica, empresas como Meituan, Uber, iFood e Amazon atuam como plataformas tecnológicas que conectam oferta e demanda sem, necessariamente, manter vínculo empregatício com os trabalhadores.
A gig economy (economia de bicos) surge dentro desse ecossistema, caracterizada por trabalhos sob demanda, realizados por motoristas, entregadores, freelancers e outros profissionais autônomos. Embora ofereça flexibilidade, esse modelo costuma ser precarizado, com instabilidade financeira, ausência de direitos e forte pressão algorítmica.
Na China, milhões de pessoas migraram para esse tipo de atividade, impulsionadas por plataformas como a Meituan. O fenômeno teve efeitos positivos — como a inclusão digital e a geração de renda — mas também gerou sobrecarga, estresse e insegurança para os trabalhadores.
Um modelo com características chinesas
A economia de plataforma na China se consolidou com apoio direto do Estado. Os chamados superapps, como WeChat e Alipay, reúnem funções que vão de pagamentos a serviços públicos e denúncias ao governo. São ecossistemas fechados, que substituem o uso tradicional da internet por ambientes integrados e centralizados.
Essas plataformas estão integradas ao sistema estatal de segurança, vigilância e gestão urbana. Reconhecimento facial, big data e inteligência artificial são usados em serviços públicos, educação, policiamento e até no monitoramento de entregas.
As transformações no consumo também são notáveis. O live commerce (comércio ao vivo por influenciadores) tornou-se um fenômeno cultural e econômico, enquanto a entrega ultrarrápida redefiniu o que os consumidores esperam em termos de conveniência.
Com as novas regulações, o governo chinês tenta equilibrar crescimento digital com justiça social e controle público, impondo limites ao poder das big techs locais.
Carta de intenções para fortalecer cooperação em economia digital
Durante a atual visita oficial a Pequim, nesta terça-feira (13), o governo brasileiro firmou com a China uma Carta de Intenções para o Desenvolvimento de Alta Qualidade da Cooperação em Investimentos na Economia Digital.
O acordo foi assinado entre o Ministério do Comércio da República Popular da China e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) do Brasil, com o objetivo de aprofundar a parceria estratégica no campo digital e tecnológico. Os investimentos da Meituan se inserem nesse contexto.
O documento reforça compromissos assumidos no Memorando de Entendimento assinado em 2023, e reconhece que as visitas dos presidentes Xi Jinping ao Brasil (novembro de 2024) e Lula à China (abril de 2023) impulsionaram a cooperação econômica bilateral.
Entre os principais eixos da parceria estão:
- Apoio à participação de empresas dos dois países em projetos ligados à nova política industrial brasileira, com foco no desenvolvimento econômico local e em sinergias entre as cadeias produtivas digitais de ambas as nações;
- Investimentos em infraestrutura digital como redes de banda larga, internet, cabos ópticos, data centers, computação em nuvem e tecnologias verdes e inteligentes, incluindo inteligência artificial, 5G e cidades inteligentes;
- Promoção da transformação digital industrial, com incentivo a plataformas tecnológicas emergentes, economia de dados e integração de tecnologias digitais a setores como saúde, educação, transporte e finanças;
- Fomento à inovação e à cooperação acadêmico-empresarial, com criação de laboratórios, incubadoras, alianças estratégicas de pesquisa e intercâmbio de conhecimento em economia digital;
- Integração regulatória e institucional, por meio do Grupo de Trabalho sobre Cooperação em Investimentos do Comitê de Coordenação e Cooperação de Alto Nível China-Brasil, que irá articular políticas sobre dados, IA, plataformas digitais e padrões técnicos.
A carta não cria obrigações legais, mas consolida a intenção de avançar em investimentos bilaterais na economia digital de forma equilibrada, sustentável e com benefícios mútuos. O texto foi assinado em três idiomas — português, chinês e inglês — sendo o inglês a versão prevalente em caso de divergência.
Leia aqui a Carta na íntegra
O que esperar no Brasil
A chegada da Meituan ao Brasil sinaliza não apenas um novo concorrente no setor de entregas, mas também a entrada de um modelo de negócio altamente digitalizado e integrado, com impacto direto sobre trabalho, urbanismo e consumo.
Mais do que uma disputa entre aplicativos, o movimento traz à tona o debate sobre regulação da economia de plataforma, direitos dos trabalhadores e o futuro da organização social mediada por algoritmos. É a China digital — com suas virtudes e dilemas — cruzando o caminho da vida cotidiana brasileira.