CHINA EM FOCO

Conhecendo na prática a Democracia Popular de Processo Integral da China — por Rafael Henrique Zerbetto

Jornalista relata experiências de democracia popular em diferentes contextos do país

Reunião do GYLD com partidos políticos
Reunião do GYLD com partidos políticosCréditos: GYLD
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No dia 17 deste mês, eu e outros quatro colegas estrangeiros tivemos uma reunião com representantes do governo da cidade de Pequim, onde moramos. As autoridades queriam conhecer nossas experiências, observações e sugestões, com o objetivo de entender melhor a realidade dos talentos estrangeiros na cidade, identificar problemas e discutir o aprimoramento das políticas públicas voltadas para os estrangeiros que vivem e trabalham na cidade.

Reuniões como essa são parte do cotidiano na China: autoridades de diferentes níveis de governo se reúnem frequentemente com representantes de diferentes círculos da sociedade para se informar sobre as dificuldades que as pessoas enfrentam e coletar sugestões do que pode ser  melhorado. Essas consultas públicas são parte essencial da democracia popular de processo integral, um conceito característico da visão do Partido Comunista da China (PCCh) sobre a participação popular na governança do país.

Conceito tem origem em um processo histórico

Em 2021, durante visita à província de Jiangxi, visitei alguns sítios históricos relacionados aos primórdios da revolução chinesa. Naquela viagem, duas coisas chamaram minha atenção: as diferenças entre o processo revolucionário chinês e o conceito de revolução que temos no Brasil, e a ênfase que o PCCh sempre deu à participação popular.

Em 1927, Mao Zedong teve a ideia de fazer a revolução a partir do campo, pois conhecia a dura realidade dos camponeses e percebeu o potencial de engajá-los na luta pelo socialismo. Para isso era necessário estabelecer um diálogo com a população rural, ouvir suas queixas e agir para resolver os problemas.

Um poço, ainda em funcionamento em Ruijin, conta bem essa história: quando os comunistas chegaram ao local, imediatamente se informaram a respeito dos problemas enfrentados pela população, e uma queixa comum era a longa distância que precisavam percorrer para obter água. Mao e seus homens imediatamente cavaram o poço, resolvendo o problema e ganhando o apoio da população.

Nos primórdios do socialismo na China, o governo se organizou em assembléias populares e o PCCh em comitês. Em minhas viagens pela china, constatei a existência de comitês até mesmo em áreas remotas. Eles mantém estreito contato com a população e atuam para resolver os problemas assim que surgem.

Poço cavado por Mao Zedong e outros comunistas recém-chegados a Ruijin

O termo Democracia Popular de Processo Integral foi usado publicamente pelo presidente Xi Jinping em 2019 e incorporado à legislação chinesa em março de 2021, mas ele resulta de um processo de aperfeiçoamento da governança do país, combinando avanços teóricos com a experiência prática.

A democracia popular de processo integral tem o objetivo de permitir ao povo participar de todas as etapas da vida política do país, incluindo a eleição de quadros, processos decisórios, trabalho legislativo, administração pública e supervisão.

Como funciona na prática?

Nos meus primeiros anos na China, acompanhei de perto os trabalhos de eliminação da pobreza e tive a oportunidade de visitar alguns dos últimos rincões de pobreza do país para ver esse trabalho de perto.

Uma senhora de um vilarejo em Xinjiang, que abriu uma pousada com ajuda do governo local para conseguir se livrar da pobreza, me contou uma história inusitada: ela só fala o idioma uigur e os turistas que pernoitam no local são, quase todos, oriundos do leste da China e falam mandarim. Para se comunicar com eles, ela pede auxílio ao comitê local do PCCh, que providencia um intérprete voluntário aos moradores.

Frutas, castanhas e chá de leite sobre a mesa de pousada em Xinjiang

Ela foi além: quando o negócio começou a prosperar, ela foi pega de surpresa por um súbito aumento de demanda, com a pousada cheia de turistas, todos eles encomendando refeições. O estoque de comida acabou rapidamente, mas ainda havia muitos clientes para atender. Sem poder sair para comprar o que precisava, ela novamente recorreu ao comitê, que salvou sua renda e a reputação de sua pousada.

Os comitês dão uma grande vantagem à governança do país, pois conseguem moldar as políticas às necessidades locais, conhecem detalhadamente os problemas e as perspectivas do lugar e mantém um diálogo estreito e constante com a população. No Brasil, quem aprova a reforma de uma escola ou a pavimentação de uma rua nunca vai ao local conferir a situação, nem antes, nem depois da obra.

Fora isso, o cidadão tem canais à disposição para informar problemas, fazer crítica e enviar sugestões ao governo. A linha telefônica 12345, que nas grandes cidades também oferece atendimento em diversas línguas estrangeiras, é um bom exemplo: cada telefonema gera um número de protocolo para acompanhamento, as queixas são encaminhadas para os órgãos responsáveis e os atendentes do call center entram em contato para que a pessoa confirme a resolução do problema e avalie o resultado.

Além dos comitês e dos canais de comunicação, acontecem fóruns temáticos, nos quais autoridades debatem com representantes de diferentes setores da sociedade os desafios e dificuldades referentes aos serviços públicos; e as consultas, que são direcionadas à coleta de dados para elaboração e aperfeiçoamento de políticas específicas.

Minha experiência anterior

Em 15 de abril de 2022, fiz parte da primeira delegação de estrangeiros a visitar o comitê municipal do Conselho Consultivo Político do Povo Chinês (CCPPC) em Pequim. Na ocasião, fui recebido pela secretária geral do comitê, Li Yalan, que o descreveu como uma plataforma para efetivar tarefas.

Para exemplificar o trabalho do CCPPC, ela apresentou o trabalho de combate à poluição do ar na região Pequim-Tianjin-Hebei. Membros do comitê visitaram diversos lugares para inspeções, conversaram com trabalhadores e especialistas de diferentes setores e coletaram informações valiosas para encaminhar a questão da maneira correta, devolvendo o céu azul à população.

 Reunião com representantes de partidos políticos (GYLD)

Em escala nacional, o CCPPC reúne representantes de todos os partidos políticos da China e também indivíduos sem filiação partidária, de todos os grupos étnicos do país, dos cinco grupos religiosos reconhecidos legalmente no país, e também de diferentes círculos profissionais e sociais.

Ao final de cada ano, o comitê municipal do CCPPC se reúne com o governo municipal para planejar os trabalhos do governo para o próximo ano. No início do ano novo, de acordo com o calendário tradicional chinês, o comitê escuta os relatórios de trabalho do governo e do judiciário municipais, organiza reuniões do comitê e de suas lideranças, elabora propostas com base no consenso e as leva ao governo para ser executadas. Ao longo deste processo, o CCPPC ouve as opiniões tanto dos especialistas como da população, de modo a garantir que as propostas tenham base tanto democrática como científica.

Naquele mesmo dia e com aquela mesma delegação eu visitei quatro partidos políticos da China – o partido Zhigong, a Sociedade Jiusan, O Comitê Revolucionário do Kuomintang Chinês (também conhecido como Minge), e a Associação Chinesa para A Promoção da Democracia (Minjin) – e tive conversas com alguns de seus quadros.

Todos esses partidos políticos existem desde antes da fundação da República Popular da China e apoiam o socialismo com características chinesas, mas cada um tem seu próprio foco. Por exemplo, a Sociedade Jiusan prioriza o desenvolvimento da educação e da ciência.

Naquela reunião com representantes desses partidos, ouvi suas experiências e exemplos de como eles atuam na vida política do país. Alguns deles focaram em contar sobre propostas de seus partidos que foram enviadas ao CCPPC, enquanto outros falaram sobre a importância e o significado da democracia para a governança do país.

“Os ingleses não vêem a China como um país democrático. Mas na China as pessoas percebem que o modelo chinês é mais adequado para nosso país, pois tem suas raízes na China e se adaptou à realidade nacional”, declarou Wang Yang, representante do partido Zhigong naquela reunião.

Minha própria experiência no país valida o relato de Wang: a vasta maioria dos chineses que conheço defende o modelo de democracia adotado pela China e acredita que um modelo importado, como o ocidental, não condiz com a realidade e as necessidades específicas do país. É comum ouvir de chineses a ideia de que cada país deve desenvolver seu próprio modelo de governança, adequado às próprias condições.

Até mesmo os estrangeiros podem participar

Para exemplificar melhor a prática da democracia na China, vou usar como exemplo a reunião entre estrangeiros e autoridades de Pequim no dia 17. A comunidade de expatriados na cidade passou recentemente por uma profunda mudança: nos meus primeiros anos aqui, quase todos os estrangeiros que encontrei fora do meu círculo profissional eram professores de idiomas que pretendiam ficar na China por alguns anos e depois ir embora.

Delegação na plenária do CCPPC de Pequim (GYLD)

Hoje em dia, cada vez mais estrangeiros recém-chegados são profissionais altamente qualificados e disputados internacionalmente, que têm necessidades mais complexas e planejam ficar aqui por um longo tempo. Obviamente, as políticas públicas precisam acompanhar essas mudanças.

A maioria dos temas trazidos para discussão pelos estrangeiros espelha essa realidade, pois estão relacionados à permanência prolongada na cidade, incluindo temas como moradia, custo de vida, serviços médicos, estabilidade no longo prazo e problemas relacionados à educação dos filhos de estrangeiros na China.

Vários, inclusive eu, reclamaram dos inconvenientes de ter que renovar o visto anualmente, e as autoridades não apenas tomaram nota como nos sugeriram uma forma de obter um visto de cinco anos, indicando que a questão foi entendida a partir do ponto de vista do transtorno de se ter que lidar anualmente com burocracias, quando o verdadeiro problema é outro: sem uma garantia de permanência prolongada no país fica difícil planejar o próprio futuro.

Por exemplo, você compraria um apartamento em um país estrangeiro tendo um visto que expira daqui menos de um ano? Mas depois de renovar o visto diversas vezes você se dá conta de que passou vários anos pagando aluguel e não investiu em algo que gera uma perspectiva de futuro. Eis o impasse que muitos estrangeiros enfrentam na China.

Muitos de nós apontamos dificuldades relacionadas a compra de imóvel, obtenção de residência permanente e educação dos filhos, que levam muitos estrangeiros a ir embora da China, eu mesmo conheci alguns que após longo tempo desistiram da vida aqui por causa dessas questões.

Ao mesmo tempo em que apontamos problemas e sugerimos melhorias, nossas experiências e observações também evidenciaram os avanços realizados nos últimos anos, que não foram poucos. Eu mesmo apontei dois: a grande melhoria na qualidade do ar e a inclusão dos trabalhadores estrangeiros no sistema chinês de seguridade social. Também foram citadas melhorias na infraestrutura e no transporte público.

Para além do conteúdo da reunião em si, notei um contraste enorme entre as críticas construtivas que fizemos ao governo da cidade, com o intuito de relatar problemas práticos e propor soluções ou formas de amenizá-los, e as conversas sobre política que vejo em grupos de brasileiros em redes sociais, que se resumem a críticas vazias e trocas de acusações e ofensas que não geram perspectivas de solução.

Apontando um caminho para o mundo

Volto a destacar que, ao conversar com chineses, muitos fazem questão de destacar que o modelo chinês de governança, por ser baseado nas especificidades do país, é o mais adequado à China, mas não serve para outros países, justamente porque cada país tem uma cultura e uma realidade própria e por isso precisa desenvolver seu próprio modelo.

Concordo com essa visão, mas temos muito a aprender com a experiência chinesa. Buscar um modelo de governança que incentive e garanta a participação popular e, acima de tudo, oriente as políticas públicas para a produção de resultados práticos, é o desafio que precisamos encarar.

Fora da China, as disputas políticas estão cada vez mais ideologizadas e desconectadas da prática, com cada vez mais ataques à educação, à ciência, à cultura e à civilidade, pilares essenciais para o desenvolvimento de qualquer país.

A irracionalidade dos extremismos é fruto da descrença num sistema político cada vez mais incapaz de atender às demandas populares, no qual o povo tem o direito de eleger seus governantes, mas sente que os eleitos não conseguem resolver suas demandas.

Em 2012, na Rio+20, cansei de ouvir representantes da sociedade civil dizerem que estavam cansados de ver os líderes mundiais assinarem belas resoluções que prometem o paraíso na terra e depois não entregar nada.

De lá para cá, tal sentimento apenas se agravou, e na busca por uma solução para seus problemas, o cidadão mediano encontrou no radicalismo uma forma de expressar sua indignação. O radicalismo também não entrega nada, mas sabe em quem pôr a culpa.

Neste cenário, a China aparece como uma ilha de bom senso. O chinês percebe que sua vida melhorou, tem canais eficientes para participar de todas as etapas do processo de governança e sente que suas demandas são atendidas.

A democracia popular de processo integral facilita a participação popular, promove a harmonia social e produz resultados concretos. Ela nos aponta um caminho para superar a crise daquela democracia que foi importada e enxertada no Brasil.

 

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