A posse de Donald Trump para seu segundo mandato como presidente dos EUA inaugurou um novo capítulo nas relações transatlânticas. As polêmicas e a ruptura com o padrão histórico estabelecido após a Segunda Guerra Mundial se acumulam diariamente.
Em um cenário de guerra comercial e dois conflitos armados de dimensões regionais no Leste Europeu e no Oriente Médio, o presidente estadunidense elevou o tom com seus aliados europeus enquanto adotava uma retórica mais amigável em relação a Vladimir Putin.
Nas relações com seus aliados, as acusações contínuas sobre déficits econômicos com a UE e gastos militares insuficientes na OTAN desencadearam uma guerra comercial, seguida de uma série de tarifas e uma crescente corrida armamentista no continente europeu — algo não visto há décadas.
Prometendo encerrar rapidamente a guerra entre Ucrânia e Rússia, o governo norte-americano iniciou um diálogo direto com o governo russo na Arábia Saudita, sem o apoio europeu — nem mesmo ucraniano. Esses fatos revoltaram os líderes europeus.
Não se limitando a discursos, Trump humilhou publicamente Zelensky em uma coletiva de imprensa na Casa Branca na semana passada e condicionou a manutenção da ajuda militar aos ucranianos a um “plano neocolonialista” que forçaria a Ucrânia a ceder 50% de seus minerais de terras raras aos EUA.
Após esses eventos, Zelensky viajou diretamente para Londres, onde ocorreria a terceira cúpula extraordinária específica sobre a Ucrânia com líderes europeus.
Sem a liderança alemã, imersa em uma crise econômica e em um processo eleitoral conturbado, o presidente francês, Emmanuel Macron, que se esforçou para realizar as duas reuniões anteriores em Paris, viajou para Washington, assim como o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer. Mesmo com o país fora da UE, ele buscou se colocar como interlocutor com Trump em um momento de maior protagonismo.
Com tantos desentendimentos em pouco tempo, a desconfiança dos europeus em relação aos EUA só aumenta, especialmente com as ameaças crescentes à Groenlândia, território semiautônomo da Dinamarca. Todos estão de olho no comércio crescente e na exploração de minerais no Ártico, que se abre com o aquecimento global.
Após sucessivas declarações dos líderes europeus em resposta às posturas polêmicas de Trump sobre a Groenlândia e a Ucrânia, na última terça-feira (4), em Bruxelas, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deu o passo mais firme e concreto até o momento.
Propondo a ativação das cláusulas de defesa nacional do Pacto de Estabilidade e Crescimento do bloco para evitar endividamento e déficit excessivo dos países-membros, Von der Leyen espera que todas as nações da União Europeia invistam até 1,5% de seus respectivos PIBs em defesa nos próximos quatro anos. Isso vai ao encontro de uma demanda antiga de Trump sobre a OTAN, mas em um contexto diferente do esperado — e nada voluntário por parte dos europeus.
Pressionados por seu velho rival no continente (a Rússia) e por seu aliado, que agora os ataca (os EUA), os europeus começam a discutir até a criação de um exército do bloco, independente das relações com os norte-americanos.
Além da flexibilização do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que abre um espaço fiscal de 650 bilhões de euros, a Presidência da Comissão Europeia anunciou um fundo que emprestará um montante adicional de 150 bilhões de euros para seus membros investirem no setor de defesa. Um total de mais de 800 bilhões de euros para investimentos militares, incluindo defesa aérea, antimísseis, sistemas de artilharia, drones, sistemas antidrones, guerra cibernética e mobilidade militar.
Essas medidas contrastam com o congelamento dos investimentos dos EUA na Ucrânia. Certamente, o governo russo não recebeu bem o anúncio. Mais do que isso, o rearmamento europeu, inédito desde a Segunda Guerra Mundial, pode ser o prelúdio para mudanças de dimensões tectônicas na ordem geopolítica e militar mundial.
Nesta quinta-feira (6), com os 27 países-membros da União Europeia reunidos em uma cúpula ordinária do bloco, deve-se aprovar e reforçar as medidas já anunciadas no início da semana. Mais do que isso, as instituições do bloco (Comissão Europeia, Conselho Europeu e Parlamento Europeu) passarão a dar foco de urgência para uma nova arquitetura militar para o continente.
Longe de ser um rompimento com a OTAN, certamente são passos muito importantes que tendem a diminuir a dependência econômico-militar em relação aos EUA. Por outro lado, e em paralelo, os europeus seguem criando condições para diminuir a dependência econômico-energética dos russos e preparando novos confiscos de ativos russos, que podem chegar a 200 bilhões de euros. Por sua vez, as empresas europeias ligadas ao setor de defesa registraram altas nas bolsas de valores e celebraram o aquecimento de seu “mercado”.