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“Rio, cidade-desespero. A vida é boa, mas só vive quem não tem medo. Olho aberto malandragem não tem dó, Rio de Janeiro, cidade hardcore”. O trecho da música “Zerovinteum”, da banda Planet Hemp, lançada em 1997, fala um pouco da guerra que os cariocas enfrentam diariamente por conta da violência. De lá pra cá, a coisa só piorou, originando expressões como a clássica “o Rio não é para amadores”. Mas, acredite, algumas pessoas não se contentaram com esse cenário e decidiram ir atrás de uma guerra de verdade para chamar de sua e vivenciar uma experiência ainda mais “hardcore”. Foi o que fizeram alguns cariocas que partiram rumo à Ucrânia, onde além de desafiar diariamente todos os riscos de uma guerra, também compartilham suas rotinas nas redes sociais.
Nas postagens, principalmente no Instagram, eles aparecem caminhando pela zona de guerra, se preparando para as missões e mostrando os riscos e desafios que enfrentam diariamente por lá. Mas também há tempo para raros momentos de descontração, quase sempre tendo o funk como trilha sonora.
Os soldados cariocas, obviamente, não revelam muitos detalhes de sua vida pessoal, como profissão, família ou o que faziam antes de partirem para a guerra. Mas há exceções, como Rafael Santos (@faelpqd), que se apresenta como paraquedista do Exército Brasileiro e membro da Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia.
Em uma das postagens, Rafael aparece ao lado de outros cariocas no alojamento ajeitando os últimos detalhes para sair em missão, ao som do funkeiro MC PQD.
“Pega os cariocas se preparando pra missão na Ucrânia ao som de MC PQD”, escreveu Rafael.
Mas como nem só de conflito se vive um soldado, Rafael também mostra em suas redes momentos de paz, como uma das vezes em que esteve no Brasil e aparece ao lado do filho em uma praia de Búzios, na Região dos Lagos, ou brincando com seu cachorro Bradock. Nas postagens mais antigas de Rafael, antes da guerra, ele aparece como o típico carioca, compartilhando momentos na praia, andando de moto, de jet-ski, ou em um dos muitos cartões postais do Rio.
Há também o registro de momentos mais tensos. Em uma das muitas postagens de Rafael, que tem mais de 36 mil seguidores só no Instagram, ele aparece dentro de uma trincheira, sem conseguir disfarçar a expressão tensa. As postagens, quase sempre, vêm acompanhadas de mensagens motivacionais, muitas com citações religiosas.
“Ele fortalece o cansado e dá grande vigor ao que está sem forças. Até os jovens se cansam e ficam exaustos, e os moços tropeçam e caem; mas aqueles que esperam no SENHOR renovam as suas forças. Voam alto como águias; correm e não ficam exaustos, andam e não se cansam”, escreveu.
Outro carioca que aparece lutando ao lado de Rafael na Ucrânia é Ygor Jardim (@ygtremrj), que se apresenta como membro da Força Aérea e também integrante da Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia. Em uma das postagens, feita no ano passado, Ygor celebrava um ano de sua partida do Brasil rumo à Europa, uma mudança que transformaria sua vida. A data também marcava os quatro meses em que o para militar estava na Ucrânia.
“E hoje fazem (sic) exatamente 1 ano que larguei minha zona de conforto minha casa e vim tenta uma nova vida na Europa, passei por Portugal diversos países fiz várias amizades boas que vou carregar comigo a minha vida inteira, e também fazem 4 meses que estou aqui na Ucrânia lutando pela liberdade das pessoas e das crianças desse país”, diz um trecho da postagem.
Assim como Rafael, Ygor também compartilha sua rotina no conflito. Nelas é possível ver situações que mostram as dificuldades enfrentadas pelos brasileiros, como paisagens inóspitas e o clima, onde muitas vezes aparecem em meio à neve, um cenário nada comum para quem saiu do Rio de Janeiro.
“Estradas difíceis podem levar a destinos incríveis”, escreveu Ygor, que tem mais de 15 mil seguidores no Instagram.
Sem revelar o seu nome real, Dublê Pqdt (@op_duble), tem quase 7,5 mil seguidores e também integra o mesmo grupo de Rafael e Ygor. Assim como os companheiros, Dublê mostra seu dia a dia na guerra e em muitas postagens faz questão de valorizar a amizade com os outros soldados, que chama de irmãos.
“Não existe família mais forte que a que nasce na guerra com vínculos de honra e coragem. Soldados são irmãos!”, escreveu.
Com cenas que parecem ter sido tiradas de filmes, Dublê mostra conflitos reais, onde os soldados aparecem caminhando por trincheiras em situações de alto risco, numa intensa troca de tiros com os inimigos.
Recrutamento
Desde o início do conflito na Ucrânia, em fevereiro de 2022, diversos brasileiros se voluntariaram para lutar ao lado das forças ucranianas contra a invasão russa. Inicialmente, cerca de 500 brasileiros manifestaram interesse em se alistar na Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia, organizando-se por meio de grupos em redes sociais e aplicativos de mensagens. Desse contingente, aproximadamente 15 brasileiros chegaram à zona de conflito nos primeiros meses da guerra. ?
Um desses grupos de recrutamento é o Blackout (@group.blackout), do qual fazem parte Rafael, Ygor e Dublê. Há duas semanas, o Blackout, que conta com pouco mais de dois mil seguidores em seu perfil no Instagram, publicou um aviso de recrutamento de voluntários que desejam lutar na Ucrânia.
Com foco em brasileiros e portugueses, ou pessoas fluentes no português, o Blackout, se autointitula como um grupo paramilitar, está oferecendo vagas para fuzileiro, morteiro, piloto de drone e médico de combate. Destas, apenas a função de fuzileiro exige experiência militar. Aos que desejarem embarcar, é oferecido alojamento, alimentação e assistência médica, mas não cita nenhum tipo de remuneração. Além disso, todos os custos para se chegar à Ucrânia são por conta dos voluntários.
Conforme o conflito avançava, estima-se que entre 30 a 40 brasileiros estavam efetivamente engajados em combates em território ucraniano. Até dezembro de 2024, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil confirmou a morte de 12 cidadãos brasileiros em combate na Ucrânia. ?
Entre as vítimas, destacam-se casos como o de André Luis Hack Bahi, de 44 anos, que morreu em junho de 2022 ao tentar resgatar companheiros sob fogo cruzado na região de Luhansk, deixando sete filhos. Outra brasileira, Thalita do Valle, de 39 anos, faleceu em julho de 2022 após um incêndio em um bunker onde se abrigava, poucas semanas após chegar ao país para integrar a Legião Estrangeira Ucraniana. ?
O recrutamento desses voluntários ocorreu, em grande parte, por iniciativa própria dos brasileiros, que buscaram informações e contatos por meio de grupos como o Blackout em redes sociais e aplicativos de mensagens. O governo ucraniano estabeleceu a Legião Internacional de Defesa Territorial para atrair combatentes estrangeiros, mas a Embaixada da Ucrânia no Brasil afirmou que não estava realizando alistamentos ou campanhas para integrar essa formação militar. ?
Os voluntários enfrentam desafios significativos, incluindo custos pessoais elevados para viajar à zona de conflito, que podem chegar a R$ 7 mil por pessoa, englobando passagens aéreas e documentação necessária. Além disso, relatos indicam que muitos enfrentam condições precárias no campo de batalha, com escassez de equipamentos e alimentação, levando alguns a desistirem e retornarem ao Brasil. ?
As famílias dos brasileiros mortos em combate podem ter direito a indenizações conforme a legislação ucraniana, que prevê compensações financeiras para familiares de combatentes estrangeiros falecidos. No entanto, especialistas alertam para a necessidade de representação legal adequada na Ucrânia e para os desafios decorrentes do alto número de baixas no conflito. ?
A participação de brasileiros na guerra da Ucrânia reflete não apenas a complexidade do conflito, mas também as motivações individuais que levam pessoas de diferentes partes do mundo a se envolverem em cenários de guerra distantes de seus países de origem.
Entenda a Guerra que abala o mundo
A guerra na Ucrânia começou em 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia lançou uma invasão em grande escala ao território ucraniano. O conflito tem raízes profundas, ligadas à disputa pela influência na região e ao desejo russo de impedir a aproximação da Ucrânia com o Ocidente, especialmente com a União Europeia e a OTAN.
A invasão ocorreu após anos de tensões desde 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e apoiou separatistas pró-russos no leste ucraniano. Moscou alegou que estava protegendo russos étnicos na Ucrânia, enquanto Kiev e seus aliados ocidentais denunciaram uma violação da soberania do país.
O conflito resultou em milhares de mortes, uma crise humanitária com milhões de refugiados e sanções econômicas severas contra a Rússia. A Ucrânia recebeu apoio militar e financeiro de países ocidentais, prolongando a resistência contra as tropas russas. A guerra segue sem um desfecho claro, com combates intensos e negociações diplomáticas frequentemente frustradas.
A comunidade internacional continua dividida sobre o conflito, enquanto a Ucrânia luta para manter sua independência e a Rússia busca reafirmar sua influência na região.