ILHA ANTIFASCISTA

Berlim resiste: capital alemã desafia avanço da extrema direita e impulsiona renascimento da esquerda

O partido Die Linke, cujo nome significa literalmente "A Esquerda" em alemão, liderou a votação na cidade que já foi dividida por um muro e renasceu em uma eleição marcada pelo avanço do nazi-fascismo

Manifestação em Berlim contra a extrema direita e o AfD.Créditos: Reuters/Folhapress
Escrito en GLOBAL el

De BERLIM | "Defendam-se, resistam ao fascismo no país." Foi com esse coro uníssono que centenas de milhares de pessoas tomaram as ruas em manifestações antifascistas realizadas em Berlim e diversas cidades da Alemanha entre o final de janeiro e o início de fevereiro. Os protestos ocorreram às vésperas das eleições legislativas antecipadas do último domingo (23), que definiram a nova composição do Bundestag (o parlamento alemão) e a formação do próximo governo.

E, na prática, a população de Berlim concretizou nas urnas o apelo de resistência ao fascismo feito nas ruas, contrastando com o resultado eleitoral observado no restante do país. Isso porque o partido Die Linke, cujo nome significa, literalmente, "A Esquerda", protagonizou uma recuperação histórica na reta final da campanha de uma eleição marcada pela vitória dos conservadores do bloco CDU/CSU e pela franca e assustadora ascensão da extrema direita, representada pelo Alternativa Para a Alemanha (AfD), legenda ultranacionalista, xenofóbica e que tem ligações comprovadas com grupos e ideias neonazistas

Com menos de 5% das intenções de voto nas pesquisas, o Die Linke surpreendeu com uma arrancada final histórica e foi o partido mais votado na capital Berlim. Também liderou entre o eleitorado mais jovem e alcançou 8,8% dos votos em todo o país, superando a cláusula de barreira de 5% e garantindo uma ampliação significativa de sua bancada, que passou de 39 para 64 cadeiras.

Membros do Die Linke comemoram resultados das eleições em Berlim (Foto: Martin Heinlein)

O crescimento reflete uma recuperação expressiva, já que em 2021 o partido havia ficado abaixo do limite mínimo de votos, mas manteve representação parlamentar graças à conquista de três mandatos diretos. Desta vez, além de ampliar esse número para seis distritos, o partido garantiu presença proporcional plena no Bundestag. Esse resultado abre perspectivas de resistência em um parlamento agora dominado por forças conservadoras e de extrema direita.

Parlamento de direita (e de extrema direita)

De acordo com a apuração oficial, o bloco conservador CDU/CSU, liderado por Friedrich Merz, venceu a eleição antecipada com 28,5% dos votos, conquistando 208 cadeiras no Bundestag. O Alternativa para a Alemanha (AfD), legenda de extrema direita, obteve 20,8% dos votos (152 cadeiras) e se tornou a segunda maior força política do país. Já o Partido Social-Democrata (SPD), de centro-esquerda, sigla do atual chanceler (o equivalente a primeiro-ministro na Alemanha) Olaf Scholz, ficou em terceiro lugar com 16,4% (120 assentos) – pior resultado dos sociais-democratas em décadas. Os Verdes (Die Grüne) vêm em quarto, com 11,61%. 

Com a vitória do CDU/CSU, Friedrich Merz será o novo chanceler da Alemanha depois que conseguir formar uma coalizão para garantir maioria no Bundestag, que conta com 630 cadeiras. As coalizões mais prováveis são CDU/CSU e SPD, somando 328 cadeiras, ou CDU/CSU, SPD e Verdes, com 413 assentos. As negociações devem se arrastar até a Páscoa. 

Friedrich Merz, o futuro chanceler alemão (Foto: Reuters/Folhapress)

Apesar do crescimento histórico da extrema direita, o AfD, a princípio, não fará parte do governo devido ao Brandmauer (“muro de contenção”), também conhecido como "cordão sanitário", uma barreira política estabelecida pelos partidos democráticos desde o pós-guerra para impedir alianças com a extrema direita. Ao menos foi o que expressou o futuro chanceler Friedrich Merz.

No entanto, o CDU já deu sinais de flexibilização ao contar com os votos do AfD em uma votação anti-imigração no Bundestag em janeiro, gerando receios sobre futuras aproximações e questionamentos sobre a solidez do acordo democrático. 

Alice Weidel, principal líder do AfD (Foto: Reuters/Folhapress)

Foram justamente essa sinalização de uma guinada à extrema direita por parte do CDU de Merz e o repúdio ao nazi-fascismo do AfD que impulsionaram a arrancada histórica do Die Linke na reta final da campanha, abrindo perspectivas de resistência e futuro para o campo democrático alemão. O pleito mostrou que há, na Alemanha, uma esquerda renovada. 

Adesivo contra o AfD colado em lixeira em rua do centro de Berlim (Foto: Ivan Longo/Revista Fórum)

O renascimento da esquerda sob uma nova estratégia

O desempenho do Die Linke, impulsionado pela nova direção do partido e, principalmente, pela liderança da jovem deputada socialista Heidi Reichinnek, surpreendeu a todos. Aos 36 anos, Reichinnek conquistou amplo apoio entre os jovens, sendo uma figura ativa nas redes sociais, especialmente no TikTok, e uma das vozes mais contundentes contra a extrema direita no Bundestag.

Heidi Reichinnek, deputada do Die Linke, durante a comemoração do partido pelos resultados alcançados nas eleições (Foto: Martin Heinlein)

Foi Reichinnek, que ostenta uma tatuagem da comunista Rosa Luxemburgo no braço, quem protagonizou um dos momentos mais marcantes da campanha, ao denunciar no Bundestag, em janeiro, a colaboração entre CDU e AfD. Seu discurso, que viralizou com mais de 30 milhões de visualizações, expôs a hipocrisia de Merz e inflamou protestos pelo país. No pronunciamento, ela fez referência direta à música antifascista "Wehrt Euch, leistet Widerstand" ("Defendam-se, resistam ao fascismo"), que, dias depois, seria entoada por milhares nas ruas de Berlim em manifestações contra a extrema direita.

"Apesar de todas as diferenças políticas, eu nunca teria imaginado que um partido democrata-cristão daria esse passo e faria pactos com extremistas de direita. É isso que vocês estão fazendo", disse Heidi Reichinnek na tribuna do parlamento

"E isso apenas dois dias depois de termos lembrado aqui a libertação de Auschwitz. Dois dias depois de termos homenageado os assassinados e torturados. E vocês trabalham com aqueles que continuam a propagar exatamente essa ideologia", prosseguiu a jovem socialista. 

Além de inflamar manifestações antifascistas, o discurso de Heidi Reichinnek  motivou, no dia seguinte, uma filiação recorde de pessoas ao Die Linke, que chegou a mais de 81 mil filiados – o maior número de sua história. 

Fundado em 2007, o partido surgiu da fusão de duas siglas: o Partido do Socialismo Democrático (PDS), sucessor do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED), que governou a Alemanha Oriental até a reunificação, em 1990, e a Alternativa Eleitoral para o Trabalho e a Justiça Social (WASG), criada em 2004 por ex-membros do Partido Social-Democrata (SPD) e sindicalistas insatisfeitos com as reformas neoliberais conduzidas pelo então chanceler Gerhard Schröder.

Nos primeiros anos, o partido registrou um crescimento expressivo, tornando-se a terceira maior força política nas eleições federais de 2009, quando conquistou 11,9% dos votos e garantiu 76 cadeiras no Bundestag. No entanto, ao longo da última década, enfrentou um declínio progressivo, culminando em um duro golpe em setembro de 2023, quando uma parcela significativa de seus membros rompeu com a legenda para fundar um novo partido, a Aliança Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça (BSW), formalizada no início de 2024. O BSW, entretanto, não atingiu no pleito de 23 de fevereiro os 5% da cláusula de barreira para entrar no parlamento. 

O renascimento do Die Linke em 2025 foi impulsionado, também, pela mudança estratégica na organização interna do partido, com prioridade no combate à extrema direita e no trabalho de base, "de porta em porta", junto aos eleitores, focado em pautas "concretas e realistas"  

“O pacto de Friedrich Merz com o AfD revitalizou o movimento contra a direita, e o Die Linke foi a única força que se manteve firme. Como resultado, passamos a representar a esperança de uma alternativa solidária para muitos”, afirmam os copresidentes do partido, Ines Schwerdtner e Jan van Aken, em artigo publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo.

"A fórmula para o bem-sucedido ressurgimento do partido Die Linke nos últimos meses pode ser resumida da seguinte forma: como partido, conseguimos chegar a um consenso sobre um plano estratégico comum e demos passos importantes na reconstrução e no trabalho organizacional em um curto período de tempo. Com um projeto conjunto (a campanha pré-eleitoral), conseguimos, por um lado, estabelecer estruturas eficazes para maximizar nossa atividade nos poucos meses disponíveis. Por outro lado, conseguimos um verdadeiro contato com nossos (potenciais) eleitores. Ao focarmos em reivindicações muito concretas e realistas, como o controle do aluguel, a eliminação do imposto sobre vendas de alimentos básicos e um imposto sobre fortunas, conseguimos reconstruir nosso perfil como oposição social", explicam os dirigentes partidários.

“Muitas pessoas depositaram suas esperanças em nós novamente nas últimas semanas e deram ao Die Linke uma segunda chance. Estamos determinados a não decepcioná-los”, acrescentam. 

Contexto da crise política

A eleição antecipada do dia 23 de fevereiro ocorreu depois da dissolução do parlamento pelo presidente Frank-Walter Steinmeier, que tem poderes mais limitados, em dezembro de 2024, após a derrota do chanceler Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (SPD), em uma moção de confiança. O colapso da coalizão “semáforo” — formada por SPD, Verdes e FDP (liberais) — foi desencadeado pela demissão de Christian Lindner (FDP), então ministro das Finanças, devido a divergências sobre a política econômica. A saída do FDP do governo resultou na perda da maioria parlamentar, levando Scholz a buscar o voto de confiança, do qual saiu derrotado.

Esse impasse político abriu espaço para o fortalecimento do AfD, partido monitorado pelo serviço de inteligência alemão desde 2021 por ameaçar a ordem democrática e que já vinha crescendo por explorar o medo da população diante de uma crise econômica e de imigração.

O descontentamento com a economia, a inflação e a política migratória impulsionou o apoio ao AfD, que se apresenta como alternativa ao status quo. A legenda ultranacionalista, comprovadamente ligada a grupos e ideias neonazistas, conquistou vitórias regionais históricas em 2024 e virou a segunda maior força política do país, apesar das massivas manifestações contra seu avanço.

Berlim, a ilha antifascista

Se nacionalmente a extrema direita avançou, Berlim reafirmou seu histórico de resistência. O Die Linke foi o partido mais votado na cidade, com 19,9% dos votos, superando o CDU (18,3%). Esse resultado garantiu seis das 24 cadeiras parlamentares da capital alemã e consolidou Berlim como um bastião progressista cercado por regiões onde o AfD cresceu.

Manifestação massiva em Berlim contra o AfD e a extrema direita (Foto: Reuters/Folhapress)

Em bairros centrais e com forte presença de imigrantes, como Kreuzberg e Neukölln, a esquerda obteve votações expressivas. No entanto, em distritos periféricos, como Marzahn-Hellersdorf, o AfD conquistou avanços significativos, indicando desafios para a resistência antifascista em longo prazo.

A cidade, outrora dividida por um muro, hoje se ergue como uma ilha antifascista em um Bundestag onde a extrema direita avança. O Die Linke sai das eleições revigorado, especialmente entre os mais jovens, mas o desafio será transformar esse respaldo em uma oposição consistente diante de uma maioria conservadora que já sinalizou colaboração com a extrema direita. 

Em um país onde as cicatrizes do nazismo ainda marcam a memória coletiva, Berlim reafirma seu papel como bastião da resistência. Enquanto o AfD amplia sua influência, cresce também a mobilização contra ele.

No Bundestag, ecoa o chamado de Heidi Reichinnek: "Auf die Barrikaden!" (Às barricadas!). E, pelo que tudo indica, a barricada da resistência ao fascismo continuará sendo Berlim.

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar