Desde os tempos do falecido Silvio Berlusconi, a Itália não via um escândalo tão grande envolvendo o governo e o Poder Judiciário. Giorgia Meloni (Fratelli d’Italia, direita), chefe do governo italiano, foi acusada de favorecimento e peculato por um procurador da República em Roma, Francesco Lo Voi.
Ao seu lado — também acusados — estão os ministros da Justiça, Carlo Nordio, do Interior, Matteo Piantedosi, e o subsecretário da Presidência, Alfredo Mantovano. O motivo da acusação foi a libertação e o repatriamento do general líbio Osama Njeem Almasri, acusado de diversos crimes.
Preso em Turim no dia 19 de janeiro de 2025, após assistir ao jogo entre Juventus e Milan, o general foi solto e repatriado no dia 21 de janeiro de 2025, em um voo organizado pelo serviço secreto italiano. Eis que o escândalo ganha notoriedade.
Recebido como herói em Trípoli, capital da Líbia, o militar é acusado de diversos crimes de guerra e contra a humanidade. Oficial da polícia federal líbia e ex-comandante da penitenciária Mittiga (próxima a Trípoli), ele coordena parte do importante fluxo migratório para a Europa e teria sob sua responsabilidade 34 mortes, além de ser acusado de ordenar casos de tortura e estupro.
Em um vídeo-resposta divulgado em suas redes sociais, a primeira-ministra Giorgia Meloni acusou o procurador de ser parcial e contrário às mudanças promovidas por seu governo no país. Ela citou ainda um processo recente envolvendo refugiados e um de seus ministros, Matteo Salvini (Lega, direita), alegando proximidade do procurador com a esquerda e com mafiosos.
Justificando-se, Meloni afirmou que a Corte Penal Internacional de Haia não teria comunicado o Ministério da Justiça italiano a tempo. Encerrando o vídeo de cerca de dois minutos, declarou ainda que não se intimidará e que seguirá de “cabeça erguida e sem medo”.
A solicitação de prisão do general foi feita em 2 de outubro de 2024 por um procurador de Haia, mas o mandado só foi emitido pela Corte Penal Internacional em 18 de janeiro de 2025.
Por esse caminho, o general Almasri viajou tranquilamente durante 12 dias por três países europeus (Alemanha, Inglaterra e Bélgica) antes de chegar à Itália.
A repercussão imediata da disputa foi vista em todos os setores da política italiana. Dentre seus apoiadores, Antonio Tajani (Forza Italia, centro-direita) tentou minimizar a ação do procurador, dizendo estar ao lado da primeira-ministra e pedindo uma reforma da Justiça. Na mesma linha, o polêmico Matteo Salvini também pediu uma reforma da Justiça e chamou de “vergonha” a ação do procurador, o mesmo que o acusou em outro processo relacionado à imigração na cidade de Palermo.
Por outro lado, a resposta dos partidos da oposição (de centro-esquerda e esquerda) foi imediata. Seus líderes — Nicola Fratoianni (Verdi e Sinistra), Elly Schlein (Partito Democratico), Giuseppe Conte (Movimento 5 Stelle), Matteo Renzi (Italia Viva) e Carlo Calenda (Azione) — apontaram erros e mentiras do governo nesse episódio, além de desrespeito às instituições e vitimismo da premiê.
Por sua vez, a Associação Nacional dos Magistrados (ANM), que está em processo eleitoral, tentou reduzir a temperatura do conflito entre o Poder Executivo e o Judiciário, alegando que a iniciativa do procurador foi apenas uma comunicação discricionária — e não um aviso de garantia da ordem que pudesse causar maiores problemas a Meloni.
Apesar do ruído e da possibilidade de que a Corte Penal Internacional de Haia possa denunciar o governo italiano ao Conselho de Segurança da ONU por violação do estatuto, o caso não deve prosperar, especialmente dada a passagem do mesmo general por outros países europeus, evidenciando uma flagrante falha ou desrespeito do sistema.
Para alguns analistas, a libertação do general, mais do que uma falha ou desrespeito, “deixa no ar” outros elementos políticos por trás das aparências, como uma possível retaliação do governo em relação ao fluxo de imigrantes do Norte da África para a Europa.