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Entre rinocerontes e insubmissões: "Esquerda não deveria ofuscar sinal de ruptura", diz analista francês

Em entrevista à Fórum, o cientista político Anderson Pinho fala sobre o cenário político da França após as eleições legislativas

Peça 'Rinoceronte', do dramaturgo francês Eugène Ionesco.Créditos: Philippe Halsman, ‘Dali with Rhinoceros
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Foto em destaque: uma das principais influências para o teatro do absurdo, a peça “Rinoceronte”, do dramaturgo francês Eugène Ionesco, conta a história de humanos que se transformam no grande mamífero e agem bestialmente numa alusão à ascensão do fascimo na Europa. 

No amplo inventário de teorias políticas disponíveis na história, poucas são as situações que já não tenham sido mapeadas pelos que buscam compreender a natureza dos eventos imponderáveis. Formulado por Antonio Gramsci, o conceito de ‘crise orgânica’ lança luz sobre os processos nos quais nenhuma das forças políticas em disputa consegue hegemonizar a situação na qual estão colocadas. Como resultado da difusão e da dispersão de forças que se chocam na sociedade, instaura-se, frente à crise de hegemonia, um contexto indeterminado, com a abertura do horizonte em relação ao qual toda anomalia social torna-se possível no movimento de transição de uma conjuntura à outra, até que seja possível a acomodação entre os setores em conflito.  

O resultado das últimas eleições legislativas na França é, para todos os efeitos, demonstrativo desse movimento. Sem nenhuma das três principais forças políticas atualmente no país arregimentar as 289 cadeiras necessárias para formar a maioria absoluta e a sonhada governabilidade, a instabilidade institucional, com ares de ineditismo desde o início da Quinta República, se confirmou no resultado do segundo turno no último dia 7 de julho. 

Se do ponto de vista imediato o Reagrupamento Nacional, coalhado pela extrema-direita, chega como terceira força nos resultados, aquém do que os números do primeiro turno indicavam após sua vitória expressiva para o Parlamento Europeu, o partido comandado por Marine Le Pen e Jordan Bardella, além do neoliberal Jean-Philippe Tanguy na área econômica, não tem do que reclamar: até então contido pela chamado ‘cordão sanitário republicano’, elegeu a maior bancada de deputados da sua história, tornando-se também a força mais votada do país nessas eleições.

Por sua vez, desgastado e sem consolidar uma alternativa de centro suficientemente expressiva para governar, o bloco de Emmanuel Macron conseguiu minorar suas perdas mantendo um relativo controle sobre a formação de maioria no parlamento, estabelecendo a dependência de outras forças em relação à sua base. Se poderia ser pior para os dois setores, fato é que também não é o melhor dos mundos — nem mesmo para a Nova Frente Popular (NFP).  

Sob o comando da enérgica França Insubmissa, liderada por Jean-Luc Mélenchon, a coalizão de esquerda, alusiva à famosa frente de 1935 contra os fascismo, chega em primeiro nos resultados, mas, desde já, com dificuldades para indicar um primeiro-ministro de consenso. Desde o início deste século, houve apenas três vezes em que a França presenciou a chamada “coabitação”, situação em que o presidente e o primeiro-ministro não compõem a mesma base política.

No atual arranjo de forças, em que ninguém exatamente ganha ou perde — sempre a depender do ponto de vista em que analisamos —, razões para acreditarmos numa crise orgânica não faltam.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos da França (Insee, na sigla em francês), em dez anos duplicou o número de franceses que se privam por falta de recursos, ao passo que, no mesmo período, triplicou o número de beneficiários da ajuda alimentar. Desde a crise econômica que diminui paulatinamente as margens do Estado de bem-estar social, a  exemplo da impopular reforma da aposentadoria de Macron; passando pela questão migratória exposta no assassinato do jovem Nahel Merzouk por policiais franceses, até os possíveis destinos de uma Europa envelhecida e cada vez menos protagonista no mundo, a crise estrutural fragmenta a sociedade francesa e revela nessas eleições ainda a mácula de um passado colonialista e colaboracionista que resiste em desaparecer. 

Para entendermos as tensões dessa instabilidade, conversamos com o cientista político francês Anderson Pinho, formado pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne e observador das relações políticas entre Brasil e França. Atualmente residente no Estado do Rio de Janeiro, Pinho é filho de pai brasileiro e mãe francesa, tendo nascido em Paris e, desde jovem, envolvendo-se com associações estudantis e assessoramento de políticos socialistas na França. A entrevista, concedida entre o primeiro e o segundo turno das eleições legislativas, ilustra a surpresa com a reviravolta dos resultados. 

Leia na íntegra: 

Fórum: Enquanto observador do processo interno dessas eleições, o que você avalia do cenário francês considerando, atualmente, o contexto político brasileiro?

Anderson Pinho: Essas eleições legislativas não têm precedentes desde a primeira dissolução da Assembleia Nacional em 1997. Além disso, o prazo muito apertado de três semanas para irmos  às urnas após as eleições europeias também influenciou o processo eleitoral. Nesse contexto, podemos destacar, em primeiro lugar, a altíssima participação da população. No último domingo, o comparecimento foi de 66,7%, o maior desde 1997 quando ocorreu a última dissolução. Isso mostra que o povo francês compreendeu a natureza histórica dessa eleição, entre o avanço do  Reagrupamento Nacional (RN) e também, somado a isso, a sensação de estar em um impasse democrático. A partir de 1958, sob o regime da Quinta República, a França acomodou-se em um sistema bipartidário com a divisão entre esquerda e direita. O processo iniciado pela eleição de Emmanuel Macron em 2017 e a recomposição do cenário político em três blocos está pressionando um sistema político "presidencialista" que, até o momento, não tem "instruções de uso" para essa configuração política. 

Além disso, no contexto desse período de tempo muito curto, as eleições também foram marcadas pela incapacidade de nossas instituições em regular a ação da mídia, de garantir o pluralismo diante das campanhas de comunicação agressivas por parte da extrema-direita com a disseminação de notícias falsas. Nos últimos anos, a França tem visto um declínio significativo na independência da imprensa. A criação de um verdadeiro império de mídia por Vincent Bolloré, proprietário dos canais de televisão Canal+, C8 e CNEWS, da estação de rádio Europe 1 e do jornal JDD, para citar apenas alguns, deu às ideias de extrema direita um lugar de destaque na opinião pública. Para entender a ascensão da extrema direita na França, é fundamental observarmos o lugar dado a essa ideologia na esfera pública. 

Fórum: Desde o final da Segunda Guerra Mundial, após o trauma colaboracionista de Vichy, o sistema político francês se manteve em uma relativa estabilidade política. Hoje, no entanto, as coisas parecem mudar. Qual a importância das eleições francesas deste ano e em quais circunstâncias ocorreu, como temos presenciado, a ascensão da extrema-direita no país?

AP: É interessante reinscrever o contexto político atual em conexão com a saída da Segunda Guerra Mundial. E isso na medida em que a Quinta República foi criada pelo General de Gaulle em oposição ao regime de Vichy e à instabilidade parlamentar da Quarta República. Hoje, há um discurso na França dizendo que ‘tentamos de tudo, exceto o Reagrupamento Nacional’ para explicar a votação expressiva da extrema-direita. As semelhanças e filiações entre o regime de Vichy e a visão política do RN foram rapidamente esquecidas. Talvez não tivéssemos chegado a esse ponto se, desde 2017, Emmanuel Macron não tivesse começado a reabilitar a memória do Marechal Pétain ou de outros pensadores nacionalistas como Charles Maurras. A situação política atual pode ser explicada pela ‘desdemonização’ do RN e das suas dessas ideias, em particular desde 2017.

Voltando ao cerne da questão, essas eleições parlamentares antecipadas foram de extrema importância e os franceses compreenderam isso, com 67% de participação. Em primeiro lugar, joga-se a natureza do próximo governo francês, com a possibilidade de ver o RN na liderança na Assembleia Nacional e, portanto, a possibilidade de nomear o primeiro-ministro. Seria a primeira vez a dar ao RN a possibilidade de colocar em parte sua agenda política. Embora na França o exercício do poder político seja bicéfalo, o Presidente da República tem um poder de veto. Esse cenário me faz temer que a França gradualmente siga o caminho que acompanhamos aqui no Brasil. Cada poder, cada funcionário eleito, cada fórum dado às ideias da extrema direita são um risco para os direitos dos indivíduos e também para sua situação econômica.

Fórum: Pode-se dizer que o macronismo tem relação direta com o fortalecimento da narrativa empregada pela extrema-direita na França?

AP: Esta situação é, na verdade, uma extensão do que tem sido jogado desde 2017. A ascensão de Emmanuel Macron ao poder é de fato concomitante ao novo cenário político. Sua eleição consagrou o surgimento de três blocos: esquerda eco-socialista, um centro liberal e a extrema-direita. E isso, dando um lugar mais importante ao RN no parlamento e no cenário político. O partido presidencial foi o primeiro a cruzar as linhas da “barreira republicana”, agarrando as medidas e a retórica do RN. Além disso, confiaram responsabilidades à Assembleia Nacional no RN já em 2022, permitindo que se tornassem aceitáveis, fazendo-os parecer sérios. Além da prática do poder, o governo de Emmanuel Macron implementou, acima de tudo, um projeto político liberal que, no contexto da crise do capitalismo, serviu apenas para reforçar as desigualdades, na medida em que o acesso aos alimentos voltou a ser um problema para parte de nossa população. Parte da França, incluindo a França “interior” e os subúrbios, têm uma forte sensação de abandono, assistindo impotente ao fechamento de serviços públicos como hospitais, correios e estações de ônibus. Isso criou um ressentimento que o RN conseguiu capitalizar.  

O cientista político Anderson Pinho (Foto: Raony Salvador)

Fórum: Ao lado do bloco presidencial, como se posicionam as outras duas forças atualmente?

AP: O resto da paisagem política francesa que também está em recomposição. À esquerda, apesar de uma aliança que obteve uma pontuação muito positiva, duas tendências se opõem. O primeiro, social-democrata clássico, está considerando a possibilidade de um governo de unidade nacional para impedir que o Encontro Nacional entre no cargo de primeiro-ministro. O segundo, reunido em torno da figura de Jean-Luc Melenchon, é objeto de fortes críticas da mídia e de outras figuras políticas. Para sobreviver, os campos presidenciais e parte da social-democracia deve reduzir o espaço da esquerda radical, que, no entanto, permitiu que a esquerda fosse representada em 2017 e 2022 nas eleições nacionais. A outra questão é o futuro da direita, parte da qual já partiu para fazer uma aliança com o RN. A outra parte está ligada ao macronismo, que os resultados do primeiro condenaram à morte iminente. A direita francesa parece estar reduzida ao posicionamento do centrão brasileiro. Sem espaço eleitoral para governar, eles podem somar seus votos para um partido ou outro e tentar influenciar as eleições. Uma outra coisa é certa: essas eleições completaram a liberação do discurso racista, xenófobo, antissemita e, de forma mais ampla, contra os direitos humanos no debate político francês. Todos os dias, manifestações e ataques liderados pela extrema direita ocorrem na França. O aumento dessa violência é inédito e nos causa preocupação com o declínio, talvez definitivo, de uma certa relação com os valores de nossa República e com as ideias que a França costumava promover no mundo.

Fórum: Ao contrário do que imaginávamos após o primeiro turno das eleições, no qual as forças de extrema-direita ficaram em primeiro lugar, essa tendência não se confirmou. Ao que se deve a reviravolta na qual o NFP chega como força principal após o segundo turno?

AP: Primeiramente, parece que nós conseguimos, momentaneamente, derrotar a narrativa da extrema direita que as mídias criaram. Segunda, tinha, ainda, a “barreira republicana”. Do mesmo jeito que em 2002, 2017, 2022, hoje em 2024, houveram pessoas da direita que votaram para a esquerda, e vice-versa, para evitar a extrema direita. Mas essa barreira é cada vez mais fraca e a extrema direita, como vimos, mais forte. O terceiro é que há uma verdade dinâmica na união graças à NFP. A esquerda tem um eleitorado forte na França, mas não pode se dar ao luxo de ficar dividida. Nas eleições legislativas anteriores, em 2022, essa união com a NUPES (Nouvelle Union Populaire Economique et Sociale) e aqui com o NFP aumentou consideravelmente sua representação na arena política. Lembre-se de que, em 2017, a esquerda foi dizimada na Assembleia Nacional, após o fracasso do mandato de cinco anos de François Hollande (PS). 

Fórum: Quais as dificuldades hoje para que essa “verdade dinâmica” da NFP sobreviva para além das eleições e forme um governo com margem de ação?

AP: Embora a NFP tenha ficado em primeiro lugar, a coalizão não tem maioria absoluta para governar. É nisso que se baseia a nomeação de um primeiro-ministro na França. Emmanuel Macron pode, portanto, decidir formar uma aliança com a direita e governar com eles, já que, desse modo, seriam mais numerosos que a NFP. Até agora, o NFP permaneceu unido, recusando uma aliança com o partido de Emmanuel Macron. Entretanto, as dificuldades para identificar um primeiro-ministro persistem, com cada partido desejando naturalmente estar o mais bem representado possível. A chave deve estar na identificação de uma figura consensual da sociedade civil, uma vez que as propostas apresentadas pelos partidos políticos não são consensuais no momento. Deve-se lembrar que, mesmo que o NFP escolha um primeiro-ministro, sua capacidade de governar será muito relativa, dada a ausência de uma maioria na Assembleia Nacional.  O desafio para o NFP é ver se essa coalizão é sustentável ao longo do tempo. Hoje, há uma tentativa muito forte da mídia e de parte do cenário político de empurrar a França Insubmissa para fora do campo republicano, nos moldes dos ataques a Jeremie Corbyn na Inglaterra. Isso permite que os outros partidos políticos, incluindo o Partido Socialista e os Ecologistas, se destaquem. 

Fórum: Algumas análises apontam que apesar da reviravolta favorável à esquerda, o macronismo seja, na verdade, o  verdadeiro vitorioso. Apesar do seu desgaste, o bloco presidencial chegou  em segundo lugar e ainda impõe dilemas para formação de um governo de centro-esquerda, comprometendo possíveis reformas estruturais. O que você pensa disso?

AP: O que é certo é que a derrota do campo presidencial não é tão grande quanto se previa. Depois de ficar atrás do Reagrupamento Nacional nas eleições europeias, o partido do presidente agora está atrás da NFP. Macron é o primeiro presidente desde Jacques Chirac em 1997 a não ter uma maioria (o que já era o caso desde 2022). Seu campo se enfraqueceu ainda mais e alguns dos pesos pesados do seu bloco não foram reeleitos. Se a derrota é menor do que o esperado, também é difícil falar em vitória. Entretanto, o partido ainda tem o poder de remodelar o cenário político, propondo uma aliança à esquerda (dividindo o NFP) ou à direita (arriscando o desaparecimento da identidade de certos partidos de direita). A menos que a França siga um cenário de estilo italiano que ainda não experimentamos dentro de nossas próprias fronteiras.

Fórum: Quais são as responsabilidades e compromissos programáticos da esquerda em relação ao eleitorado para que a vitória do NFP não sirva apenas como demonstração da incapacidade do progressismo em responder os problemas do país?

AP: Acho que os dois compromissos da esquerda que devem permanecer são manter a unidade de seu grupo (a unidade foi o fator principal nessa vitória) e também não correr o risco de se comprometer em uma aliança ampla com o centro ou até mesmo com a direita, sob o risco de ofuscar o sinal de ruptura enviado aos eleitores. Para conseguir isso, precisamos garantir uma direção política clara, uma ruptura com o passado, para que possamos embarcar em políticas que melhorem resolutamente a vida cotidiana dos franceses. A esquerda francesa não pode se dar ao luxo de se desqualificar mais uma vez. 

Fórum: Com o macronismo apostando na dissolução da FNP e no poder de barganha do Renascimento para manter sob controle o centro político, podemos dizer que os riscos de fragmentação entre os partidos de esquerda se dê, sobretudo, em relação às diferenças de política econômica entre eles?

AP: O que distingue os partidos de esquerda hoje em dia não são tanto as diferenças em suas políticas econômicas, mas sim no campo das questões "sociais" ou das relações internacionais. Parece-me que todos os partidos de esquerda estão agora comprometidos com uma política de demanda, forte investimento na transição ecológica e tributação de grandes fortunas. O que diferencia a esquerda é sua posição nas questões internacionais e europeias, em relação por exemplo à guerra entre Israel e Palestina, e também em relação à Ucrânia, em menor escala. O tratamento do racismo e o relacionamento com a polícia também têm sido uma fonte de divisão. Há questões de culturas políticas muito diferentes como o fato de haver ou não um consenso sobre uma estratégia populista ou social-democrata.

Fórum: Considerada até então a maior força da esquerda, como o Partido Socialista sai destas eleições diante do fortalecimento da França Insubmissa?

AP: O Partido Socialista saiu fortalecido dessa eleição, com mais do que o dobro do número de parlamentares, enquanto a França Insubmissa se manteve estável. A França Insubmissa continua na liderança e, até o momento, o primeiro secretário do Partido Socialista, Olivier Faure, está mantendo as alianças iniciadas. Olivier Faure, que tem apoiado a união da esquerda desde 2020, foi bem-sucedido em sua aposta e é um dos nomes que circulam como primeiro-ministro. Seu desafio é conseguir manter a maioria no Partido Socialista, já que parte da ala à direita do partido é anti-França Insubmissa. O fio vermelho que percorre a esquerda, em cada uma das perguntas, é se eles conseguirão manter uma aliança em um programa de ruptura, incluindo a France Insubmissa, ou se romperão com ela, como os partidos políticos do centro, da direita e da extrema direita e também parte do cenário da mídia estão tentando forçá-los a fazer.