A Arábia Saudita não vai renovar o acordo de petrodólar com os Estados Unidos. O anúncio feito pelo príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman (MBS), no último domingo, 9 de junho de 2024, é um divisor de águas na economia global e na geopolítica. Mais um elemento que sinaliza a construção de um novo mundo multipolar.
O acordo entre o país árabe e a maior economia do mundo perdurou por 50 anos e estabelecia que o petróleo saudita seria vendido exclusivamente em dólares estadunidenses, consolidando o dólar como a moeda dominante no comércio global de petróleo. Em troca, a Arábia Saudita receberia proteção militar e apoio econômico dos EUA.
Esse arranjo é uma das principais razões que fizeram do dólar dos Estados Unidos a moeda dominante no mundo. Apesar do fato de que o país, ao contrário da Grã-Bretanha e da França, não colonizaram metade da Terra, os EUA conseguiram controlar a economia global, e o dólar americano é a principal moeda dos negócios mundiais.
Além disso, pessoas comuns e entidades privadas tratam o dólar como um porto seguro para seus investimentos de poupança a longo prazo. Isso é exatamente o mesmo que investir em títulos do governo ou ouro à vista, mas o dólar dos EUA só ganhou esse poder em razão do petrodólar.
As tensões em curso, que chegaram a um nível crítico com o anúncio do MBS, podem minar o sistema de petrodólares, ponto-chave para a ordem financeira global. A Arábia Saudita, membro influente da Opep, e outros países podem começar a negociar petróleo em moedas diferentes do dólar, reduzindo a demanda pela moeda dos EUA.
Esse movimento pode resultar em sérias implicações econômicas globais, especialmente considerando os recentes investimentos sauditas em empresas de energia russas e o aumento das importações de petróleo russo para consumo interno.
O que levou ao fim do petrodólar
Vários fatores contribuíram para o declínio do sistema do petrodólar. As tensões entre os EUA e a Arábia Saudita, especialmente sob a administração de Joe Biden, têm enfraquecido a aliança histórica.
Assassinato de Jamal Khashoggi
Uma das principais fontes de tensão foi o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018, no consulado saudita em Istambul, na Turquia, que gerou forte repercussão internacional. Biden, durante sua campanha presidencial, prometeu tratar a Arábia Saudita como um "pária" e responsabilizá-la pelo assassinato, o que causou atritos significativos entre os dois países. Após assumir a presidência, o democrata criticou fortemente o príncipe herdeiro e a administração saudita pelo envolvimento no assassinato, o que abalou as relações bilaterais.
Produção de petróleo
Em meio à transição de dependência energética dos EUA e da Europa para a China e a Índia, o sistema de petrodólares enfrenta desafios crescentes. Tensões recentes entre os EUA e a Arábia Saudita, exacerbadas pela guerra Rússia-Ucrânia, complicaram a situação. O sistema petrodólar, que desde a década de 1970 fortalece a posição do dólar no comércio global de petróleo, está sob pressão com a negociação de petróleo em outras moedas.
Outro ponto de conflito nas relações entre EUA e os sauditas foram as decisões da versão estendida da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep+) de reduzir a produção de petróleo também causaram atritos.
O grupo “oficial” da Opep é composto por 13 países - Arábia Saudita, Argélia, Angola, Congo, Emirados Árabes Unidos, Guiné Equatorial, Gabão, Irã, Iraque, Kuwait, Líbia, Nigéria e Venezuela - e foi fundado na década de 1960.
Já a Opep+ é a extensão do maior cartel de petróleo do mundo e entidade fundamental para definir os rumos do preço da commodity e é formado por Azerbaijão, Bahrein, Brunei, Cazaquistão, Malásia, México, Omã, Rússia, Sudão do Sul e Sudão.
Em outubro de 2022, a Opep+ decidiu cortar a produção em 2 milhões de barris por dia, apesar da pressão dos EUA para aumentar a produção e reduzir os preços globais de energia. Essa decisão foi vista como um alinhamento da Arábia Saudita com os interesses da Rússia, agravando ainda mais as tensões.
Tensões nas Relações EUA-Arábia Saudita
A guerra aumentou as tensões entre os EUA e a Arábia Saudita, especialmente em relação à produção de petróleo e sanções contra a Rússia. A Arábia Saudita tem resistido à pressão ocidental para aumentar a produção de petróleo para reduzir os preços globais.
A crescente produção de petróleo de xisto nos EUA reduziu a dependência estadunidense do petróleo saudita, o que mudou a dinâmica do relacionamento entre os dois países. Essa mudança tem gerado preocupações na Arábia Saudita sobre a diminuição da relevância estratégica do país para os EUA.
Visitas Diplomáticas e Estratégia
Em 2022, líderes ocidentais, incluindo o então primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e o presidente francês, Emmanuel Macron, visitaram a Arábia Saudita para persuadir o aumento da produção de petróleo. Biden também visitou o reino em junho, propondo uma nova estrutura de desenvolvimento econômico e segurança militar para o Oriente Médio. No entanto, a Arábia Saudita manteve sua posição de não aumentar a produção de petróleo.
Efeito China
Embora a administração Biden tenha tentado suavizar as relações, incluindo o reconhecimento da imunidade de MBS nos tribunais dos EUA, a Arábia Saudita continua a fortalecer seus laços com a China. Em dezembro de 2022, o presidente chinês, Xi Jinping, visitou a Arábia Saudita, resultando em uma parceria estratégica abrangente, incluindo acordos para transações de petróleo em yuan, sinalizando uma possível mudança do petrodólar para o petroyuan.
A China, como o maior importador de petróleo do mundo, tem pressionado para que as transações de petróleo sejam realizadas em yuans em vez de dólares. A introdução do contrato futuro de petróleo em yuan pela Bolsa Internacional de Energia de Xangai é um exemplo dessa mudança. Pequim busca reduzir sua dependência do dólar e aumentar a internacionalização de sua moeda.
Papel do BRICS
A Arábia Saudita ingressou no BRICS em janeiro deste ano. O grupo tem buscado maneiras de negociar petróleo e outras commodities em moedas locais, desafiando ainda mais a hegemonia do dólar. Nesta segunda-feira (10), os ministros das relações exteriores dos países que formam o bloco, incluindo o saudita, emitiram uma declaração conjunta na qual um dos pontos enfatiza a importância do uso aprimorado de moedas locais em transações comerciais e financeiras entre os países, o que inclui o petróleo.
O nascimento do petrodólar
Em 15 de agosto de 1971, o presidente dos EUA, Richard Nixon, chocou o mundo ao encerrar o sistema de conversibilidade do ouro. O sistema de conversibilidade do ouro foi estabelecido em 1944 e vinculava as moedas ao dólar dos EUA e permitia a conversão do dólar em ouro. Nesse período pós Segunda Guerra Mundial, os EUA emergiram como a nova superpotência, através de um acordo conhecido como Bretton Woods.
Com o acordo de Bretton Woods, foi estabelecido o Fundo Monetário Internacional (FMI), que trabalharia para garantir a estabilidade das taxas de câmbio, fixando taxas entre as moedas. Após esse acordo, o dólar do EUA substituiu o ouro como padrão de troca para qualquer outra moeda ou commodity, sendo que 1 USD foi fixado em 35 onças de ouro.
A criação do petrodólar, resultado de um acordo estratégico entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, surgiu a partir de três eventos principais:
1.Fim do Sistema Bretton Woods (1971): O Sistema Bretton Woods, estabelecido em 1944, vinculava as moedas ao dólar americano e permitia a conversão do dólar em ouro. Em 1971, o presidente Richard Nixon encerrou a conversão direta do dólar em ouro, desvalorizando o dólar e levando ao colapso do sistema Bretton Woods.
2. Crise do Petróleo de 1973: Em resposta ao apoio dos EUA a Israel durante a Guerra do Yom Kippur, os países da Opep impuseram um embargo de petróleo aos EUA e seus aliados. Isso fez com que os preços do petróleo aumentassem drasticamente e agravou a inflação nos EUA.
3. Acordo EUA-Arábia Saudita (1974): Para estabilizar a economia e assegurar o acesso ao petróleo, o secretário de Estado Henry Kissinger negociou um acordo com a Arábia Saudita. Em troca de proteção militar e assistência econômica, a Arábia Saudita concordou em vender petróleo exclusivamente em dólares dos EUA e investir suas receitas em títulos do Tesouro dos EUA. Este acordo foi posteriormente seguido por outros países da Opep, consolidando o dólar como a moeda padrão para o comércio de petróleo.
O petrodólar desempenhou um papel crucial ao manter a demanda global por dólares e permitiu que os EUA financiassem seus déficits com maior facilidade, consolidando o dólar como a principal moeda de reserva do mundo. Esse sistema reforçou a posição econômica e geopolítica dos EUA por várias décadas.
Como o fim do petrodólar afeta o Brasil?
O fim do sistema do petrodólar pode trazer tanto oportunidades quanto desafios para o Brasil. Enquanto a diversificação de moedas de comércio pode reduzir a dependência do dólar e potencialmente fortalecer laços com outros grandes atores econômicos, a volatilidade cambial e os ajustes nos mercados globais podem trazer incertezas que exigirão uma resposta adaptativa da política econômica e monetária do país.
Como muitos outros países, o Brasil realiza a maioria de suas transações de comércio internacional em dólares. Com a possível diminuição da demanda global por dólares, pode haver volatilidade cambial, afetando as taxas de câmbio do real brasileiro em relação ao dólar e outras moedas.
A mudança para outras moedas no comércio de petróleo pode alterar os custos de importação de petróleo e produtos derivados. Se o Brasil tiver que negociar petróleo em yuan chinês ou outras moedas, poderá haver custos adicionais de conversão cambial e novos desafios para empresas que dependem de transações em dólar.
O Brasil tem uma significativa reserva internacional em dólares. Com a diminuição da demanda global por dólares, o valor dessas reservas pode ser afetado, impactando a política monetária e a capacidade do país de responder a crises financeiras.
A China é um dos principais parceiros comerciais do Brasil. A transição para o comércio em yuan pode fortalecer ainda mais os laços econômicos entre os dois países, oferecendo ao Brasil novas oportunidades e desafios nas relações comerciais com a China e outros parceiros estratégicos.
Com a Arábia Saudita como membro do BRICS, do qual o Brasil faz parte, a colaboração econômica dentro do bloco pode se intensificar. Isso pode proporcionar ao Brasil oportunidades de comércio e investimento mais diversificadas, ao mesmo tempo em que reduz a dependência do dólar dos EUA.
As mudanças na estrutura de pagamento pelo petróleo podem influenciar os investimentos em infraestrutura energética no Brasil. A dependência reduzida do dólar pode atrair novos investimentos de países como China e Rússia, que podem estar mais dispostos a negociar em suas próprias moedas.
A volatilidade nos mercados globais de petróleo pode impactar os preços internos de energia no Brasil. Se os preços globais do petróleo forem afetados pela transição para outras moedas, isso pode se refletir nos preços dos combustíveis e da energia no Brasil, com possíveis repercussões econômicas mais amplas.
O que esperar do fim do petrodólar
A mudança da Arábia Saudita pode ter implicações significativas para a hegemonia econômica dos EUA. Com a diminuição da demanda por dólares, os EUA podem enfrentar desafios adicionais em financiar seus déficits sem causar inflação interna ou queda nos preços dos títulos do Tesouro.
Além disso, a decisão da Arábia Saudita reflete um realinhamento estratégico, com o país buscando fortalecer laços com potências emergentes como China e Rússia, ao invés de depender exclusivamente dos EUA.
Embora a mudança seja significativa, especialistas sugerem que o dólar ainda manterá sua predominância no curto prazo, especialmente devido à sua vasta utilização em transações financeiras globais e como reserva de valor.
No entanto, a gradual aceitação de outras moedas no comércio de petróleo sinaliza uma tendência de longo prazo de diversificação e potencial declínio da supremacia do dólar.
Essas mudanças indicam uma transição lenta, mas significativa, do domínio do dólar no comércio global de petróleo, o que pode levar a um cenário econômico global mais multipolar e menos dependente da moeda dos EUA.