Há 79 anos atrás, as forças da União Soviética entraram em Berlim e finalmente venceram a Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial.
Foram 20 milhões de mortos, incontáveis perdas culturais, financeiras e afetivas na chamada Grande Guerra Patriótica. O sacrifício se concluiu com a vitória comunista e o aniquilamento do fascismo no continente. Era o fim da guerra na Europa.
Na Europa Ocidental, a vitória é celebrada em 8 de maio. Agora, na Ucrânia alinhada à OTAN, também. Mas a tradição no leste europeu sempre foi a lembrança do dia 9 de maio.
Após décadas de apagamento, ainda se desvaloriza os esforços soviéticos no combate ao nazismo e ao fascismo. Mas já passou da hora de olhar para a história de maneira séria.
Por isso, conversamos com o professor João Cláudio Platenik Pitillo é doutor em história social, pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (NUCLEAS-UERJ) e um dos principais sovietólogos do Brasil, autor dos livros 'Aço Vermelho: os segredos da vitória soviética na Segunda Guerra' e 'O Exército Vermelho na Mira de Vargas', para entender melhor a data do 9 de maio.
Revista Fórum: Para começar, o que foi o 9 de maio?
João Pitillo: O 9 de maio foi uma data muito importante porque foi a vitória final. Foi o fim da aventura fascista, foi o fim da intentona das forças do eixo em dominar o mundo. O 9 de maio é o tiro final, é quando a Alemanha fascista se rende e todos os seus satélites já não têm mais condição de continuar a luta.
Nós tivemos, seriamente, ameaçados de que essas forças do eixo conquistassem o mundo. Se a União Soviética tivesse sido derrotada, eles teriam acesso a uma quantidade tamanha de recursos que tornaria o exército nazista quase imbatível.
RF: Qual a diferença entre o 8 e 9 de maio?
JP: As forças alemãs, quando os aliados ocidentais se aproximaram da Alemanha já pararam, praticamente, de combater. Ao mesmo tempo,eles temiam uma represália muito forte por parte dos soviéticos.
A guerra que eles lutaram na União Soviética não foi a mesma guerra que eles lutaram na Europa. A política do extermínio, do estupro, da destruição sem precedentes, isso aí não foi feito da mesma maneira na Europa Ocidental.
Só foi feito dentro da União Soviética.
No dia 8, eles terminam as negociações e correm para se render na cidade de Reims, na França, onde era a sede do comando aliado. Quando a União Soviética descobre que eles se rendem lá e o Ocidente começa a comemorar o fim da guerra, a União Soviética se pergunta: como é que a guerra pode ter acabado lá, no Ocidente, se os soldados alemães ainda resistiam em Berlim e ainda matavam soviéticos?
A USSR falou, olha, a guerra acabou aí, aqui não. Eles têm que se render na capital, Berlim, e têm que se render para o exército que carregou o maior fardo. Lembrando: mais de 75% das forças do eixo foram destruídas pelo Exército Vermelho
Por isso que os soviéticos só comemoram o dia 9, não é um capricho. É porque enquanto os ocidentais já estavam comemorando a paz, os soviéticos ainda precisavam lutar. Agora, não dá para falar de vitória sem os soviéticos.
RF: Dá para falar em vitória contra o nazismo sem os soviéticos?
JP:A União Soviética carregou o maior fardo da guerra. Ela destruiu mais de 75% das forças do Eixo. Eu não estou falando só dos alemães, das forças do Eixo.
E depois, na guerra na Ásia contra o Japão, o exército soviético vai ficar encarregado de lutar contra a maior parte do exército japonês. Um exército de aproximadamente um milhão de homens, que é o exército que estava ocupando a Manchúria, que era o exército de Kwantung, que era a elite do exército imperial japonês.
O Japão não se rende por cada bomba nuclear. Ele se rende por conta da derrota na Manchúria.
RF: E o apagamento histórico dessas vitórias do socialismo?
JP: Se não fosse o socialismo, a União Soviética não tinha vencido. Foi a economia socialista, foi a educação socialista que permitiu a União Soviética vencer.
Você vê que a França caiu com pouco mais de três semanas, a Europa Ocidental foi toda ela tragada, a Inglaterra estava passando um sufoco gigantesco e os alemães deram boas surras nos estadunidenses e nos ingleses e nos franceses, não só na Europa, mas também na África.
A Alemanha nazista chegou muito vigorosa e essa sociedade capitalista não deu conta disso. Foi a economia socialista que conseguiu produzir mais e melhor pra frente de batalha.
A outra coisa é que a Guerra Fria precisava comprometer a moral soviética, ela precisava construir a imagem de uma União Soviética ruim, feia, melancólica, cinza, triste, ineficiente e tudo isso entra em contradição quando você fala que a União Soviética foi a maior vencedora da guerra.
A USSR destruiu a maior máquina militar da história, destruiu um conglomerado de nações das mais poderosas. Como que um país que você diz que só tem coisas negativas conseguiu isso? Então, essa máquina do apagamento, da falsificação da história que a Guerra Fria produziu vai afastar a União Soviética do seu papel e criar uma história de ficção. Vai mentir, vai falsificar a história pra colocar os ocidentais como os principais responsáveis pela derrota do Eixo.
Tirar a ênfase da União Soviética e colocar um peso maior nos Estados Unidos e na Inglaterra, que nós sabemos que por mais heróicos que eles tenham sido, por mais importantes que eles tenham sido, eles não foram determinantes. A palavra determinante tem um conceito diferente de importante. Determinantes foram os soviéticos.
RF: E isso tem relação com a ascensão da extrema direita nos dias de hoje?
JP: Esse retorno do fascismo se dá na medida que o movimento comunista recua. O refluxo que o movimento comunista hoje vive, o refluxo que o socialismo passa no mundo, em parte também pelo combate duríssimo que ele vem enfrentando desses movimentos liberais, liberais burgueses, do capitalismo.
Isso tem favorecido o retorno do fascismo. Todas as vezes que o fascismo apareceu de maneira aguda, foram os comunistas, foram os socialistas que foram a vanguarda desse processo.
Quando você apaga isso, você reabilita o fascismo. O fascismo vem automaticamente ao encontro dessa mentira.
RF: Professor, você esteve recentemente no leste europeu e passou por Lituânia (atual OTAN), Belarus e Rússia. Quais foram suas percepções?
JP: Países como os Lituânia, Letônia e Estônia, em particular a Lituânia onde eu estive, mas também a Polônia e a Ucrânia, receberam uma carga muito forte do Ocidente a nível de propaganda ideológica e também a partir de um longo processo de cooptação das suas lideranças.
A Igreja Católica teve um papel muito importante nisso, em fazer uma preparação de guerra contra o legado soviético. Havia um medo muito grande que o socialismo retornasse naquela região pós-91. Do mesmo jeito que houve um golpe que derrubou o socialismo, podia haver um outro movimento de retorno, porque logo as pessoas foram vendo que tinham sido enganadas.
As promessas de uma vida melhor pós-socialismo não se concretizaram, a não ser para uma elite, uma pequena elite, um pequeno aglomerado burguês que vai se aproveitar do processo de privatização dos bens públicos.
Para evitar o retorno do socialismo de maneira imediata, o Ocidente investiu pesado ideologicamente na formação de uma classe média extremamente reacionária.
E aí você reescreve a história e reabilita o fascismo. Nessa região, a antítese à União Soviética era o fascismo. Então esses países foram reabilitando seus movimentos fascistas para construir uma história.
Esses grupos que passaram a incender na liderança desses países não são só nacionalistas, são fascistas. E isso tem forjado uma sociedade extremamente belicosa, extremamente raivosa. Uma sociedade que não consegue entender o papel importante da União Soviética.
A OTAN recebeu esses países dentro do seu grupo, permitindo que esses movimentos voltassem desde que eles fossem um novo tipo de fascismo.Um fascismo que fosse entreguista, que fosse liberal, que fosse permissivo com a presença do capital ocidental. Ele só tinha que manter uma característica, ser elitista e anticomunista.
Eu vejo isso com muita preocupação, porque isso vem sendo gestado há décadas. Esses movimentos se tornaram extremamente perigosos. A gente viu o exemplo da Ucrânia, no Euromaidan.
O que eu vi na Lituânia foi aterrador, eu vi uma Lituânia que é um país pequeno, relativamente pobre. As conquistas sociais da Lituânia são todas da época soviética e o que se vê é uma Lituânia que não ganhou nada em ter entrado para a União Europeia.
A Lituânia está se preparando para uma guerra. Eu não vejo por parte da Belarus, não vejo por parte da Rússia, essa belicosidade toda em seus fronteiras.
RF: Agora, voltando ao 9 de maio e pensando no Brasil. Qual foi o impacto da Segunda Guerra Mundial no Estado Novo?
JP: O Estado Novo nasce essencialmente anticomunista. Ele impedia não só que existisse o Partido Comunista, mas o trânsito de qualquer tipo de informação ou notícia ligada aos comunistas, isso era uma coisa atroz
Quando o Brasil entra na guerra, o Brasil em nenhum momento vê a União Soviética como aliada, o Brasil se coloca como aliado no escopo ocidental, com a Inglaterra, com os Estados Unidos e com os demais países latino-americanos.
Com o passar do tempo, e as vitórias soviéticas acontecendo, isso vai chamar a atenção do Estado Novo, muito grande, porque o Estado Novo passa a observar que essas vitórias estavam reverberando no Brasil, no mundo todo, por mais que a censura fosse grande, acabava reverberando.
O movimento que o Vargas vai fazer é de lentamente ir se incorporando a esse contexto aliado, em que não havia essa retórica anticomunista nesse primeiro momento. Por mais que os Estados Unidos e Inglaterra tivessem críticas ferrenhas à União Soviética, nas suas sociedades as vitórias soviéticas eram tratadas como maravilha.
Por parte da população brasileira também, uma manifestação muito grande por mais liberdade, livre reunião, liberdade de imprensa, direito à opinião, isso vai crescendo junto com a guerra, porque havia uma contradição: o Brasil lutava contra o Hitler, que era visto como um ditador sanguinário, e nós aqui embaixo, uma outra ditadura que também era extremamente reacionária. Aos poucos o Vargas vai se atentando a isso.
A partir de 1942 o Vargas vai se distanciando dessa velha guarda fascista, que lhe ajudou na fundação do Estado Novo. A criação do Estado Novo não foi uma invenção do Vargas.A demanda era dos militares e desses setores e o Vargas encampa o Estado Novo, ele era uma mola nesse acerto.
A partir de 1943 as vitórias soviéticas estão em todos os jornais, e o Brasil vai lentamente caminhando para se tornar um país democrático.
Ao final da guerra, o Brasil é um país democrático, plenamente democrático com todos os direitos civis restabelecidos, direito de imprensa, livre manifestação, tudo isso, inclusive o Partido Comunista reabilitado, e esse Partido Comunista. com o Prestes fora da cadeia vai apoiar constituinte com Vargas, e o Vargas vai tomar um golpe. A velha guarda fascista vai dar um golpe no Vargas em 1945.
As vitórias soviéticas, elas ajudaram a oxigenar o ambiente político no Brasil e em várias partes do mundo.
E importante ressaltar que o governo brasileiro, por mais que mantivesse uma censura rígida, ele tinha um acompanhamento diário e muito próximo do que acontecia na frente leste. Depois da batalha de Kursk, o Brasil começa já a liberar as notícias e aí o Brasil passa a conhecer o papel do Exército Vermelho.
RF: E professor, conta um pouco mais sobre seus estudos sobre o tema.
JP: Nesses meus estudos eu constitui dois livros. O primeiro é o Exército Vermelho na Mira de Vargas, que é um livro repleto de documentos do período do Estado Novo que mostra como é que o governo brasileiro acompanhou a guerra.
Apesar da forte censura, o governo brasileiro, os civis e os militares que colaboravam com Vargas acompanharam a guerra e tinham muito medo das vitórias soviéticas, elas fizeram o fascismo tremer lá no leste, mas fez o Estado Novo tremer aqui também. E isso responde, em parte, o anticomunismo no Brasil.
O segundo é Aço Vermelho: os Segredos da Vitória Soviética na Segunda Guerra Mundial, que é o primeiro livro na história do Brasil escrito por um brasileiro, óbvio, que conta toda a epopeia do Exército Vermelho lutando na Europa. Batalhas, operações, ordens, missões e as grandes conquistas. O livro, inclusive, narra a libertação de mais de uma dúzia de países que o Exército Vermelho entrou, libertou, culminando na vitória no dia 9 de maio.
O professor João Cláudio Platenik Pitillo mantém um acervo de história soviética em suas redes sociais @guerrapatriotica e um canal no Youtube com enfoque em temas militares e geopolíticos.