O professor Bruno Huberman, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), estudou de perto o fenômeno da colonização de Jerusalém, cidade sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos.
Jerusalém Oriental deveria ser a capital de um estado palestino independente, de acordo com planos que receberam chancela internacional.
No entanto, Israel já desenvolveu assentamentos para mais de 200 mil colonos na parte da cidade reclamada pelos palestinos.
Mais que isso, tem criado dificuldades para que os muçulmanos tenham acesso à mesquita de Al Aqsa, considerada a terceira mais sagrada pelos fiéis, depois de Meca e Medina.
Neste sábado, 17, o ministro da Segurança Nacional de Israel, Ben Gvir, ele mesmo um colono, pediu que o acesso dos muçulmanos ao Monte do Templo seja impedido durante o mês sagrado do Ramadã, que começa em 10 de março.
No Ramadã, muçulmanos de todo o mundo se dedicam ao jejum, orações, reflexões e à comunidade.
Gvir, de um partido religioso que compõe o governo de extrema-direita de Israel, argumentou:
Não é possível que mulheres e crianças sejam reféns em Gaza e permitiremos celebrações da vitória do Hamas no Monte do Templo.
Este discurso provocativo, que inflama os colonos, está na linha daquele que a África do Sul denunciou na Corte Internacional de Justiça como gerador do genocídio em Gaza.
NEOLIBERALISMO EM JERUSALÉM
Bruno Huberman estudou como o neoliberalismo em vigor em Israel trabalhou para solapar a autonomia e a soberania dos palestinos em Jerusalém.
A capa de seu livro, que em breve terá lançamento em São Paulo, traz a foto de uma loja árabe tradicional em Jerusalém, que corre o risco de se tornar coisa do passado.
Como judeu antissionista, Bruno também assinou como co-autor um artigo na Folha de S. Paulo.
Ele e os co-autores argumentaram que, apesar de todas as dificuldades, a solução mais capaz de gerar uma medida de Justiça para israelenses e palestinos que convivem no mesmo território é um Estado único, do rio Jordão ao Mar Mediterrâneo, com um voto por pessoa e políticas de restituição de propriedades e empregos roubados dos palestinos.
É a solução à África do Sul, já que o apartheid a que os negros foram submetidos tem muitas semelhanças com a situação dos palestinos sob ocupação.
Bruno explicou suas ideias em entrevista que foi ao ar no Fórum Global:
Aqui, a íntegra, editada para fins de clareza:
"O livro trata dessa correlação, como diz o título, entre colonialismo e neoliberalismo na Palestina, com um aspecto central em Jerusalém Oriental.
Essa foto, inclusive, é de um mercado da cidade velha de Jerusalém, um dos lugares mais turísticos e economicamente vibrantes da cidade, particularmente para os palestinos. E o meu objetivo é buscar demonstrar como o colonialismo israelense é um elemento estrutural da ação dos israelenses em relação aos palestinos na cidade.
Esse colonialismo se dá de diversas formas. Ele pode se dar através, por exemplo, da expulsão de palestinos das suas casas e da construção de bairros exclusivamente judeus em Jerusalém Oriental. Isso pode se dar também, por exemplo, da relação de exploração de trabalho palestino.
O que eu busco demonstrar aqui é como nesse fenômeno colonial, mesmo quando há sinais de inclusão de parcelas da sociedade palestina, por exemplo, através de programas de capacitação empreendedora, entra a dinâmica neoliberal.
O que eu busco é entender como a dinâmica neoliberal normaliza a dinâmica colonial. Porque nesse momento agora, por exemplo, em Gaza, a gente vê o colonialismo brutal, duro, da sua mais cruel face, inclusive da história da relação da Palestina-Israel, através do genocídio e da destruição em massa que a gente vê em Gaza.
Mas o colonialismo nem sempre é destruição em massa, apesar de estar no fundo dele a destruição em massa. Muitas vezes o colonialismo também é um fenômeno mais suave, que busca, por exemplo, reconhecer a humanidade do colonizado, que busca reconhecer a sua potencialidade, que busca reconhecer que ele pode ser bom para a sociedade colonial.
O que eu busco demonstrar é como o Estado de Israel, através da Prefeitura de Jerusalém e de outros mecanismos governamentais e não governamentais, busca transformar o território, a população palestina, a partir das necessidades do capital israelense, do capital global que existe ali em Jerusalém e em Israel de forma geral.
"COLONIALISMO SUAVE"
Por exemplo, um caso que eu estudo é como os programas de capacitação empreendedora para o mercado high-tech, que é representado por alguns como algo não colonial, algo que vai contra o colonialismo, na verdade, é só o colonialismo atuando de uma forma mais suave.
Porque a gente não está falando dos palestinos se autodeterminando, quando eles têm a autonomia, por exemplo, para escolher um emprego, o colonialismo que determina como isso vai operando, a partir das suas necessidades. E o empreendedor palestino no mercado high-tech nunca vai ter a capacidade de concorrer com o empreendedor israelense, ele sempre vai ser dependente.
Ou seja, é uma reprodução, é uma renovação das dinâmicas do colonialismo através da inclusão. Mas a inclusão não significa uma ascensão, uma emancipação do palestino para ele ser igual ao israelense.
Ele vai ter uma vida melhor, ele vai ter um trabalho melhor, mas não vai ter liberdade, autodeterminação e dignidade. Por isso que é uma colonização neoliberal que a gente pode ver, por exemplo, através do mercado imobiliário israelense construindo assentamentos.
Isso também é colonialismo neoliberal. Por exemplo, muitos assentamentos hoje em dia são como os subúrbios da Califórnia. Isso é uma dinâmica neoliberal do colonialismo.
A dinâmica que eu busco apontar é essa mais próxima da relação de trabalho. Como os trabalhadores palestinos têm sido incluídos no mercado de trabalho israelense. Isso não significa o fim do colonialismo, mas a sua reprodução, na qual os israelenses não buscam somente a terra palestina, mas também o trabalho palestino.
Eles precisam do trabalho palestino. Isso, por exemplo, vai acabando, vai destruindo a economia tradicional palestina, como essa imagem da capa. Porque muitos palestinos que mantêm, por exemplo, essa economia tradicional do comércio, os mais jovens não vão mais ocupando as lojas dos seus pais, dos seus avós. Então essas lojas, que são locais de resistência, elas vão sendo destruídas. E vão sendo substituídas por lojas de israelenses.
No meu livro eu busco demonstrar como esse processo de expulsão [das terras e lugares], por um lado, se mantém de uma forma estrutural: a Nakba não tem fim. A Nakba [Catástrofe] é estrutural. Porque começa ali em 1947, começa na verdade antes, mas em 1947, 1948, é um momento de transição, um divisor de águas fundamental, no qual a violência israelense era direcionada para a eliminação da população nativa.
E essa eliminação se dá das mais diversas formas ao longo de processos coloniais. Ela se dá, em particular no caso palestino-israelense, através da expulsão e da destruição da infraestrutura física, dos vilarejos, das cidades e tudo mais. Foram por volta de 750 mil palestinos expulsos e por volta de 500 vilarejos destruídos.
Além de mais de 15 mil mortos nesse processo. E o que a gente vê hoje na faixa de Gaza é a continuação da limpeza étnica. Você não está matando e expulsando qualquer um.
Você está matando e expulsando os palestinos pelo simples fato de eles serem palestinos. E você sempre vai ter justificativas para nublar essa violência de alguma forma. Em 1948, a justificativa era a independência [de Israel]. De fato, teve uma guerra de independência de Israel, como os israelenses chamam, que foi uma guerra de Israel e as forças árabes formadas por tropas egípcias, libanesas, sírias, jordanianas e tudo mais.
Sob a névoa da guerra, você teve a limpeza étnica. E a mesma coisa hoje, sob a névoa da suposta guerra contra o Hamas -- de fato, obviamente, há um enfrentamento com as forças guerrilheiras do Hamas -- está claro que não é uma guerra contra o Hamas, como os meios de comunicação colocam no chapéu das suas reportagens. É uma guerra contra o povo palestino.
E é isso que tem sido empreendido desde 1947, antes mesmo da fundação de Estado de Israel, quando começa a limpeza étnica, praticamente a partir de 1948. É uma guerra contra o povo palestino, para a expulsão do povo da sua terra, para a expropriação dessa terra.
Porque o elemento central desse tipo de colonialismo é a expropriação da terra. Como foi, por exemplo, um aspecto central do colonialismo português aqui no Brasil, o genocídio [dos indígenas] para a expropriação da terra. Colonialismo britânico na América do Norte, colonialismo britânico na Austrália, colonialismo francês na Argélia.
É por isso que o genocídio é um instrumento colonial. Tem esse livro do Mike Davis, historiador britânico, que chama Holocaustos Coloniais. A morte é um instrumento colonial. Não é somente a exploração do trabalho. O genocídio é um instrumento colonial.
Porque, para explicar 1948, a gente fala limpeza étnica. A gente não fala que é genocídio. Limpeza ética é um outro crime de guerra. Um outro crime contra a humanidade. Que ajuda a explicar, em particular, aquele fenômeno. Hoje, o que ajuda a explicar a gente é o termo jurídico genocídio.
Para o ponto de vista do colonialismo, qual é a lógica de você trancafiar mais de 2 milhões de pessoas em um enclave e não explorar de uma forma sistemática o trabalho deles? Para o ponto de vista de um colonialismo tradicional, exploração do trabalho, escravização, essas coisas, não faz sentido a paz de Gaza.
Mas quando você olha para todo o território da Palestina, a lógica é a expropriação da terra, que é o elemento central, e o confinamento das pessoas sobreviventes em enclaves cada vez menores, que a gente chama de faixa de Gaza. Na África do Sul a gente chamava de Bantustão. Nos Estados Unidos a gente chama de reserva indígena. Aqui a gente chama de terra indígena. Então, entra essa lógica, a expropriação da terra e dos recursos da terra.
SOBRE O FUTURO
A gente já tem um único Estado. Existe uma única soberania em todo o território da Palestina, que a gente chama de Israel, no que a gente chama de territórios palestinos ocupados na Cisjordânia e Gaza, e além das colinas de Golã sírias, que é a soberania israelense.
Eu, estudando as propostas, por exemplo, defendidas pela esquerda israelense, pela esquerda sionista brasileira, do que seria uma solução de dois Estados, o Estado palestino seria um Estado sem soberania.
É um Estado palestino sem autodeterminação. É um Estado palestino sem forças armadas. Com a missão da ONU assegurando o controle sobre esse território. Então não tem como os palestinos se autodeterminarem verdadeiramente se a gente pensar no Estado palestino sem forças armadas.
Não teria muita diferença. Continuaria sendo profundamente vulnerável aos desejos das direitas, das esquerdas, do poder israelense. Aliás, são pouquíssimos os palestinos que defendem um Estado único. Porque eles também têm uma recusa em conviver em um único Estado com os israelenses.
Eu, do meu ponto de vista particular, entendo que uma solução sul-africana seria a mais possível de trazer Justiça. Porque você inibiria essa possibilidade de ter duas forças armadas que poderiam entrar em choque. Uma pessoa, um voto.
As pesquisas que questionam, por exemplo, os israelenses sobre isso, é menos de 10% da população israelense que aceitaria. Muito baixo. Enquanto os que aceitam o Estado de Apartheid é muito mais alto.
Mas vejo como possibilidade você fazer um processo de justiça de transição, uma comissão da verdade na qual os criminosos israelenses e palestinos sejam julgados pelos crimes que cometeram, uma transição política de integração, discutir o que fazer com as extremas direitas de ambos os lados, que impedem a convivência dos grupos sociais ali...
Eu vejo a solução de um Estado como a mais capaz de entregar Justiça. Mas eu não sou contra a solução de dois Estados.