O BRASIL VOLTOU

Lula na ONU: o aclamado discurso do presidente decifrado por especialistas

Mandatário recoloca o Brasil em lugar de protagonismo no cenário internacional ao levantar pautas importantes sem deixar de fazer críticas contundentes ao próprio sistema de governança global das Nações Unidas

Lula em seu discurso de abertura da 78ª Assembleia Geral da ONU em Nova York.Créditos: Ricardo Stuckert
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Após 20 anos de sua primeira participação em uma Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a discursar na abertura da 78ª edição do mais importante fórum internacional do mundo, em Nova York (EUA), nesta terça-feira (19). Desta vez, Lula retorna à ONU não só como chefe de Estado do Brasil, mas também como presidente do G20 e do Mercosul

"Como não me canso de repetir, o Brasil está de volta. Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais", reforçou o mandatário logo no início de seu pronunciamento de pouco mais de 21 minutos. 

A "volta" a qual Lula se refere é o retorno do Brasil a um lugar de protagonismo na comunidade internacional após 4 anos do "apagão" e isolamento diplomático imposto ao país pelo ex-presidente Jair Bolsonaro

Em 2021, por exemplo, ao discursar na Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro usou boa parte de sua fala para defender teses negacionistas e o chamado o “tratamento precoce” contra a Covid-19 e chegou a falar em “ameaça socialista” no Brasil. À época, Tatiana Berringer, professora de Relações Internacionais da UFABC e integrante do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB), avaliou que a comunidade internacional recebeu o discurso do ex-presidente com "chacota" e que o então governo brasileiro estava "totalmente fora dos protocolos do mundo da diplomacia".  "A posição do Brasil na cena política internacional está em pleno declínio", disse a professora na ocasião. 

Com Lula de volta à cena internacional, levantando pautas consideradas relevantes na atual conjuntura, como combate à fome, desenvolvimento sustentável, justiça social e reforma dos mecanismos de governança global, o Brasil se impõe novamente como ator de relevância nas discussões sobre os desafios postos à sociedade. 

"O discurso de Lula, de certa maneira, sintetiza a busca do Brasil por justiça, por igualdade, por soberania e na defesa do multilateralismo, que são pautas históricas, são pautas necessárias, são pautas alinhadas a um governo progressista e necessárias neste momento histórico do mundo", analisou Tatiana Berringer em nova entrevista à Fórum

Lula durante discurso na Assembleia Geral da ONU (Foto: Ricardo Stuckert)

Combate à fome, justiça social e questões climáticas

Ao abrir seu discurso na ONU, Lula rememorou suas intervenções em outras edições da Assembleia Geral, insistindo nas críticas à desigualdade social no mundo. 

"Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade. O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe. A parte do mundo em que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida. Se irá fazer todas as refeições ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar diariamente", sentenciou o presidente brasileiro. 

Para Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o pronunciamento de Lula "não chega a ser nenhuma surpresa" pois o mandatário "falou de forma sintética sobre todas as questões internacionais que ele vem trabalhando desde o início do seu governo e desde o início de seu primeiro mandato". 

"Nessa lembrança, novamente, o ponto central que teve muita ênfase do presidente Lula foi a fome. Fome, desigualdade, pobreza. E é interessante notar que esses temas não são chamados de temas clássicos, vamos dizer assim, da diplomacia ou das relações internacionais", avalia o professor em entrevista à Fórum

Nasser destaca, ainda, como o presidente brasileiro consegue associar diretamente a pauta do desenvolvimento sustentável e combate às mudanças climáticas à sua principal bandeira, que é a da justiça social

"Isso é algo a se destacar na presença do Lula no cenário internacional. E mesmo quando ele entra nas questões mais atuais, questões climáticas, mudanças ambientais e todas as suas consequências, que vêm acontecendo, ele também a conecta com a questão da desigualdade, da fome e da opressão. Porque, ao fazer isso, ele se diferencia claramente de outras perspectivas que abordam a questão climática sob o ponto de vista neoliberal, que procura usar esse tema desconectado das questões econômicas e sociais", prossegue. 

A professora Tatiana Berringer, por sua vez, vai na mesma direção ao interpretar que o discurso de Lula "sintetizou grande parte do que tem sido a plataforma de governo e da própria política externa brasileira", analisando que "o eixo central da fala dele foi a desigualdade". A especialista chama atenção para o fato de que o mandatário, além de procurar não dissociar erradicação da fome do combate à pobreza, ainda propôs a inclusão de uma 18ª meta para além das 17 estabelecidas pela ONU para o desenvolvimento sustentável do planeta: a questão racial

"Reduzir as desigualdades dentro dos países requer incluir os pobres nos orçamentos nacionais e fazer os ricos pagarem impostos proporcionais ao seu patrimônio. No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível. Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente", anunciou Lula, sendo interrompido por aplausos da plateia. 

Para Tatiana Berringer, esse foi um dos pontos altos do discurso do presidente na abertura da Assembleia Geral da ONU em Nova York. 

"Ele começa ressaltando a necessidade da luta contra a desigualdade e adentra a elementos muito importantes: quando fala da igualdade, de que as metas de desenvolvimento do milênio devem ser tratadas de maneira integrada e global para que não haja uma segmentação, de erradicar a fome como um elemento que não esteja dissociado de combater a pobreza, ele mostra muito como essas pautas estão articuladas. E ele diz claramente que o Brasil vai trabalhar por uma 18ª pauta. Acho que aí foi o ponto auge da novidade desse discurso, que é a questão racial. Isso é muito importante para a própria identidade internacional do Brasil, para ressaltar a herança histórica, a presença do movimento negro, a presença dos negros na formação social brasileira e todas as relações que o Brasil pode ter com a África", ressalta a especialista. 

Plenário da ONU cheio para o discurso de Lula na Assembleia Geral (Foto: Ricardo Stuckert)

Também ouvido pela Fórum, o professor Rodrigo Fernando Gallo, coordenador da pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), avalia que o discurso do presidente brasileiro na ONU veio "para reforçar a agenda do governo e a própria história de Lula nos mandatos anteriores, ao discutir o combate à fome e às desigualdades". 

"Importante frisar que depois de quatro anos de governo Bolsonaro, com discursos mal recebidos pela comunidade internacional, vimos o Brasil adotar um pronunciamento dentro da normalidade, inclusive naquilo que se espera de um país propositivo, ainda que as propostas não tenham sido elaboradas (até porque não cabe a esse fórum criar instrumentos práticos). A impressão é que houve um esforço na elaboração do discurso para mostrar ao mundo que o Brasil está de volta", frisa Gallo. 

"Reforço a menção ao meio ambiente, que parece ser endereçada à União Europeia e ao acordo com o Mercosul. Meio ambiente se tornou um entrave durante a gestão Bolsonaro para que as regras fossem definidas. Agora, Lula quer fechar o acordo em definitivo até o fim do ano, como forma de fechar seu mandato frente ao Mercosul com essa vitória. Nesse aspecto, a Assembleia Geral pode ter servido para mandar um recado às lideranças europeias", prossegue o professor. 

Nova governança global: críticas ao neoliberalismo, à extrema direita e à própria ONU

Reforçando falas já feitas na cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e União Europeia, em Bruxelas (Bélgica), e ao assumir a presidência do G20 em nova Délhi (Índia), Lula usou boa parte de seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas para criticar o neoliberalismo, a ascensão da extrema direita no mundo e ainda destacar sua agenda por uma reforma dos mecanismos de governança global, entre eles o Conselho de Segurança da própria ONU e o Fundo Monetário Internacional (FMI). 

"O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias. Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos. Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário", disparou o presidente. 

A crítica à ONU veio logo após Lula defender a "promoção de uma cultura de paz" através do diálogo, citando guerras e conflitos, como o entre Rússia e Ucrânia, e ressaltando que "investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento". 

"A ONU nasceu para ser a casa do entendimento e do diálogo. A comunidade internacional precisa escolher: De um lado, está a ampliação dos conflitos, o aprofundamento das desigualdades e a erosão do Estado de Direito. De outro, a renovação das instituições multilaterais dedicadas à promoção da paz (...) Continuaremos críticos a toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de reeditar a Guerra Fria. O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. Essa fragilidade decorre em particular da ação de seus membros permanentes, que travam guerras não autorizadas em busca de expansão territorial ou de mudança de regime. Sua paralisia é a prova mais eloquente da necessidade e urgência de reformá-lo, conferindo-lhe maior representatividade e eficácia", denunciou o mandatário. 

Para o professor Reginaldo Nasser, da PUC-SP, "é interessante que, ao mesmo tempo que Lula valoriza a ONU, a sua natureza de espaço de governança global, de discussão dos grandes temas, ele a critica na forma como tem caminhado". 

"Lula não poupou críticas à ONU no sentido de dizer que os países que a compõem não levam a sério propostas como a agenda de desenvolvimento. Então, ao lado da ONU, também a crítica que o Lula fez foi às instituições internacionais. Essas instituições internacionais estão paralisadas ou instrumentalizadas, não representam mais ou nunca representaram a sociedade internacional", declara o especialista.

Lula em discurso na Assembleia Geral da ONU (Foto: Ricardo Stuckert)

Nasser destaca ainda o fato de Lula ter citado episódios recentes como o terremoto no Marrocos e as enchentes na Líbia, mas deixando subentendida uma crítica à própria ONU com relação à guerra civil no país norte-africano.

"Lula lembrou a questão da guerra civil, lembrou que quem derrubou, quem atacou, quem invadiu a Líbia foi a OTAN, autorizada pela ONU. Ele não mencionou isso, mas subentende-se a essa crítica. Mencionou a criação do Estado Palestino, que é uma pauta também constante e é um depreciativo da ONU, todo mundo sabe disso, o próprio Lula diz que a ONU foi capaz de criar Israel logo quando ela foi criada também e não é capaz de criar o Estado Palestino. Foi em face com a questão de Cuba, bateu um pouco na mesa na fala com as sanções, bloqueios. Entrou no tema da Ucrânia, não desenvolveu bastante, mas deu o recado", resume o professor. 

"O Lula, com certeza, que já vinha se reafirmando como líder internacional, expressou isso de uma forma muito clara na abertura da Assembleia Geral da ONU", arremata Reginaldo Nasser.