Do SEIXAL, PORTUGAL | Liberadas as amarras do salazarismo que perdurou por infindáveis 41 anos (1933-1974), Portugal vivia a efervescência de uma liberdade da qual já nem se lembrava mais. Como diz a expressão brasileira, os portugueses foram às ruas e à vida “felizes como pinto no lixo”. Em que pese as tensões e reviravoltas dos primeiros anos após o lendário 25 de Abril, a revolução que ficou marcada pelos cravos e pelo entoar de “Grândola Vila Morena” (terra da fraternidade), o simples fato de existir e estar em Portugal era motivo de celebração.
É nesse contexto que em setembro de 1976 é realizada a primeira Festa do Avante!, evento organizado pelo Partido Comunista Português (PCP), ainda hoje um dos mais expressivos, sólidos e representativos partidos comunistas da Europa. O nome “Avante!” é uma referência ao periódico da sigla de esquerda, fundada em 1921 e que gravita na primeira linha da política nacional, carregando nomes históricos que lutaram não só contra a instalação do Estado Novo capitaneado pelo ditador António de Oliveira Salazar, mas também com fortíssima, marcante e imprescindível participação nos eventos que resultaram na redemocratização da pequena nação ibérica em 1974.
Agremiação ativa na oposição ao regime de exceção de cariz fascista que sufocou Portugal, embora na clandestinidade, o PCP levou a cabo a ideia de brindar a reabertura democrática e criar um canal direto com sua militância e com o todo da sociedade lusa. Sem deixar para trás as agruras sofridas nos porões da ditadura, as torturas e mortes em localidades sinistras como o Campo de Concentração do Tarrafal, era hora de instituir a festa que se tornaria o maior e mais expressivo evento político, cultural, esportivo, gastronômico, musical e teatral do país até os dias atuais.
Em sua 47ª edição desde 1976 (apenas em 1987 o festejo não foi realizado, por razões de burocracia com a Câmara de Lisboa), a Festa do Avante!, hoje, é um turbilhão de atividades que concentra mais de 60 shows musicais, quase 30 ações esportivas, 25 atrações voltadas ao público infantil, 50 debates e comícios políticos, mais de 70 espaços de gastronomia, exposições artísticas, teatro e cinema, além de locais para comercialização de livros e discos.
Com duração de três dias, tudo isso é agrupado na Quinta da Atalaia, uma enorme propriedade rural com 44 mil m² localizada na Amora, uma freguesia do município de Seixal, próximo a Lisboa, na margem Sul do Tejo. O imóvel com muito verde foi comprado pelo Partido Comunista Português em 1990, após a organização da Festa do Avante! enfrentar sucessivos problemas nos anos anteriores, sobretudo com administradores públicos de várias cidades da Região Metropolitana de Lisboa, na hora de conseguir autorização para realização do evento. O espaço comporta mais de 50 mil pessoas em cada dia.
Quem também está no tradicional festival é um seleto grupo de partidos de esquerda de todo o mundo. Do Brasil, quem envia seus representantes para prestigiar a maior festa de Portugal é o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Comunista do Brasil (PcdoB), que ficam lado a lado com emissários do Partido Comunista Alemão, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Partido do Trabalho da Bélgica, Partido Comunista da Bolívia, Partido Africano da Independência de Cabo-Verde (PAICV), Partido Comunista do Chile, Partido Comunista da China, Partido Progressista do Povo Trabalhador do Chipre (AKEL), Partido Comunista Colombiano, Partido Comunista de Cuba, Partido Comunista de Espanha, Comunistas da Catalunha, Partido Comunista dos Povos de Espanha, Partido Comunista Francês, Partido Comunista da Grécia, Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Partido do Povo do Irã, Partido Comunista Italiano, Partido da Refundação Comunista da Itália, Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Frente Popular de Libertação da Palestina (FFLP), Partido Comunista Peruano, Partido Comunista Britânico, Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), Frente Polisário (Sahara Ocidental), Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), Partido Comunista da Turquia e o Partido Comunista do Vietnã, além das entidades Associação Amizade Portugal-Cuba, Associação Portuguesa de Amizade e Cooperação Iúri Gagárin, Espaço da Paz e Solidariedade com a Venezuela Bolivariana.
Entre as atrações artísticas de vários países, dois destaques brasileiros se apresentarão no Palco 25 de Abril, o principal da Festa do Avante!: as bandas ‘Francisco, El Hombre’ e a veterana Ratos de Porão, do vocalista João Gordo, que sobem ao palco em sequência na noite de sábado (2). Isso não significa que os amantes de outros ritmos latino-americanos, africanos, assim como da música eletrônica e do fado genuinamente português não serão contemplados, já que há artistas para todos os gostos.
A Guerra da Ucrânia e seus impactos no Velho Mundo, assim como noutros continentes, são alguns dos temas centrais do evento, bem como as questões migratórias, um assunto em voga em Portugal há muitas décadas. A Quinta da Atalaia fica cheia nestes dias e significativa parte do público é justamente composta por estrangeiros que foram tentar a vida nesta estreita faixa da franja ocidental da Península Ibérica que outrora se apossou de terras em todos os continentes da Terra.
Falando do evento, o secretário-geral do Partido Comunista Português, Paulo Raimundo, deixou claro o objetivo de sua tradicional sigla. “Aqui há força, aqui há capacidade de construção, aqui há capacidade de, com outros, construir alternativa, que é obrigatória, que é urgente e a cada dia que passa mais necessária, fixando objetivos fundamentais e imediatos a que é preciso dar resposta”, sentenciou para os jornalistas.
A fumaça das dezenas de cozinhas, onde pode se encontrar desde as tradicionais bifanas de porco locais até a aromática cachupa cabo-verdiana, passando pelas coxinhas e o caldinho de feijão, bem brasileiros, são o combustível que alimenta a multidão que sai de casa não apenas para festejar e celebrar a sólida democracia portuguesa, mas também para seguir aguerrida e cerrando fileiras por um mundo melhor e mais justo, como um dia fora proposto pela revolução que fez renascer Portugal, e que em 2024 completará 50 anos.