ELEIÇÕES NA ESPANHA

Ódio pode até chegar ao poder, mas não deve durar na Espanha

Direita tradicional, ao que tudo indica, se juntará aos fascistas do Vox para governar. O problema é que os espanhóis têm muito apreço por suas liberdades e democracia sólida

Cartaz do extremista Santiago Abascal, do Vox, com um 'x' de reprovação, num muro de Ibiza..Créditos: Henrique Rodrigues/Revista Fórum
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Das BALEARES | Os tempos são, de fato, assustadores, embora muitas vezes somada às preocupações reais venha a histeria. Para muita gente mundo afora, este domingo (23) é de puro drama na Espanha, como em "La Cogida y La Muerte", de Federico García Lorca, a bradar funebremente que "lo demás era muerte y sólo muerte, a las cinco en punto de la tarde", em seu "Llanto por Ignacio Sánchez Mejías", o mítico toureiro e amigo que perdeu a vida na arena de Manzanares, em 1934, ferido irremediavelmente na coxa pelo corno do furioso animal.

Em pleno verão calcinante, 37 milhões de espanhóis estão aptos a ir às urnas hoje para, ao que tudo indica, pôr fim ao governo de centro-esquerda de Pedro Sánchez, do PSOE, e dar início à gestão de centro-direita de Alberto Núñez Feijóo, do PP. Bem, não se sabe exatamente se de centro-direita, já que pela primeira vez desde a redemocratização uma legenda ultrarreacionária será o fiel da balança na formação de um novo governo. Falamos do Vox, a besta-fera que, como em vários países do ocidente, surge como uma expressiva força de extrema direita.

Ainda que muita coisa possa mudar até o fim desta noite, o que se espera é uma vitória "boa" do PP, uma diminuição não muito acentuada no número de cadeiras do PSOE e um relativo crescimento na votação do Vox, que duela com o novo Sumar, de esquerda, para ver quem fica como terceira força no parlamento. A lei eleitoral espanhola não permite divulgação de pesquisas uma semana antes do pleito, o que faz com que todos analisem o cenário com base em sondagens "velhas" e nas avaliações dos expertos mais creditados da praça.

Uma alternância de cores na chefia de governo em Madri não seria novidade, já que isso ocorreu por quatro vezes nas últimas quatro décadas. O problema é a ânsia e a fome de poder de Feijóo, que certamente não pensará duas vezes para propor ao monstrengo Santiago Abascal, o "Bolsonaro espanhol", uma coalizão para recuperar o Palácio de la Moncloa, que está nas mãos dos socialistas desde 2018, fazendo do bufão barbudo seu vice-presidente de governo (e naturalmente trazendo a tiracolo sua agenda medonha e fascista).

Tudo isso é horroroso, não se pode negar. Entretanto, cabe ressaltar e esclarecer sob que égide foi construído o regime político espanhol atual, nascido oficialmente após o decesso do ditador genocida Francisco Franco, que baixou ao magma do inferno em 1975.

A democracia espanhola foi forjada à bala e lavada em sangue. O fraticídio que atende pelo eufemismo de Guerra Civil, seguido por uma ditadura brutal que durou 36 anos, desembocou num modelo sólido e consistente de democracia, que permitiu o surgimento de um Estado moderno, zeloso e invejável inclusive para as demais nações europeias. Tenho claro que Abascal não é uma ameaça real a todas essas conquistas obtidas a duras penas, e digo os porquês.

Os espanhóis são chatos. Sim, pentelhos. Os típicos vozeirões e berros acalorados não são à toa. Poucas sociedades no mundo cobram seus mínimos direitos de maneira tão incisiva e pragmática como esse povo ibérico dos dias presentes. Isso para não falar na pluralidade da Espanha, um país tão diverso e com uma população tão "confusa", onde há espaço para absolutamente tudo, desde padres da Opus Dei andando de batina negra por cidades grandes até mulheres fazendo topless já nos caminhos que levam às belas praias mediterrâneas, antes mesmo de chegar às areais. A Espanha vai muito além de uma pequena franja de lunáticos que evoca uma orgulho nojento de um passado de atrocidades e que simplesmente quer levar o país décadas para trás, para inalar novamente o odor férrico do sangue derramado e viver outra vez as masmorras de um regime de exceção.

De tudo isso que pavimentou o caminho até as urnas neste domingo, o que mais causa espanto e carece de explicação são os motivos que levaram boa parte dos espanhóis a, repentinamente (a partir das últimas eleições municipais), reclamar de seu atual governo, dando preferência a candidatos conservadores (e até alguns fascistas), ainda que caiba explicar que o PSOE e o conjunto da esquerda permanecem com elevado nível de confiança de significativa parcela do eleitorado.

A Espanha vive um excelente momento econômico, cresce mais que a França e a Alemanha, está às portas do pleno emprego e mantém sólido como rocha seu abrangente e eficiente estado de bem-estar social. Em resumo: a algazarra da extrema direita, suas mentiras incessantes e irritantes nas redes sociais e uma síndrome de "nada está bom, nunca" levaram a uma espécie de desgaste artificial de um governo visto como positivo até mesmo por figuras críticas da esquerda, muito embora o ambiente para um "triunfo" da extrema direita não seja tão propício como no Brasil ou na Itália.

O presidente de governo, Pedro Sánchez, compareceu no início da semana ao último debate, realizado na TVE, emissora estatal, que registrou elevadíssima audiência, e saiu-se muito bem. Em dobradinha com Yolanda Díaz, do recém-inaugurado Sumar, e frente a frente com Santiago Abascal, do Vox, o líder do PSOE falou com firmeza sobre o país do qual ainda é o condutor político, aproveitando para bater duro em Feijóo, que se recusou a comparecer ao embate, dando até declarações antipáticas num clima de "já ganhou".

Somou-se a isso uma notícia requentada, mas que causou furor e agitação no cenário eleitoral, sobre as relações pessoais de Feijóo, que já duram quase 30 anos, com um conhecido narcotraficante da Galícia, sua terra natal. O líder do PP, num primeiro momento, disse que não sabia que Marcial Dorado era um criminoso, pois "não existia o Google, nem as redes sociais" quando eles se conheceram. Para piorar, dias depois, ele mudou de versão, agora para admitir que tinha conhecimento apenas de que Dorado "era contrabandista", mas não um traficante.

É difícil dizer se houve tempo, da última pesquisa até este domingo, para que os espanhóis pensassem melhor e caíssem na real sobre o atual governo, desistindo de conduzir Feijóo ao poder, com Abascal sentado em seu colo. Só que, por outro lado, é muito fácil dizer que se o cenário se confirmar e os franquistas do Vox efetivamente compuserem o novo governo, o problema para os espanhóis não será dos maiores.

Sejam os ditos "conservadores", ou mesmo os progressistas, passando aí pela massa pouco politizada que costuma servir de pêndulo entre a esquerda e a direita em todas as eleições, os espanhóis em geral têm muito apreço por suas liberdades, que custaram muito, e também são muito orgulhosos da solidez de sua democracia.

Santiago Abascal pode até virar a sombra de Feijóo, mas seu discurso animalesco não deve encontrar forças para fazer grandes estragos no país do insepulto García Lorca, vítima justamente dessa gente. Se forçar demais a mão, sua vida política acabará como o toureiro Ignacio Sánchez Mejías, ferida de morte e jogada no sol, "a las cinco en punto de la tarde".