2023 já está terminando e o mundo mudou. Ao longo dos próximos dias, iremos um publicar uma série de entrevistas com especialistas para analisar quais foram as principais questões para diferentes tópicos das relações internacionais ao longo dos últimos doze meses e o que vem por aí.
Nossa primeira entrevistada é Rita Coitinho, socióloga, doutora em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), secretária-geral do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz) e autora do livro "Entre duas Américas - EUA ou América Latina?".
Especialista em integração latino-americana, Rita conversou com esta Fórum para analisar quais foram os principais aspectos da política dentro da América do Sul, continente que passou por diversas transformações. Tivemos a posse de Lula, as eleições de Peña, Noboa e Milei, a recusa da constituição chilena e o aumento de tensões entre Venezuela e Guiana.
Fórum: Como você avalia as mudanças regionais de 2023? Foi um ano recheado de mudanças no executivo - Lula, Peña, Boluarte, Milei. A América do Sul sai mais fortalecida ou menos fortalecida de 2023? Quem foi o protagonista do continente neste ano?
Rita Coitinho: O saldo geral do ano, se podemos falar dessa maneira tão genérica em relação a uma região que tem tantas peculiaridades nacionais, é que aquele “ciclo virtuoso” de governos progressistas, que caracterizou a primeira década desse século, encerrou-se. Ao mesmo tempo, o insurrecionismo que caracterizava os movimentos sociais de corte de esquerda ou socialista foi capturado por figuras de orientação neoliberal e de extrema-direita. Se, por um lado, a ascensão dos governos de espectro mais à esquerda no início do século XXI mostrou o repúdio dos povos latino-americanos aos efeitos do neoliberalismo, por outro, as respostas “progressistas” parecem não ter conseguido responder à altura os anseios dos povos, gerando descontentamentos que não parecem ter respostas de curto prazo.
No Brasil, a derrota da extrema-direita nas eleições presidenciais (direita essa que pavimentou seu caminho ao poder com o golpe de 2015/16) foi uma sinalização importante, mostra que a alternativa “ultraliberal na economia, conservadora nos costumes e autoritária na gestão do Estado” não conseguiu também manter a amplo apoio que a levou à presidência em 2018. Ficou demonstrado também que o descontentamento com os governos petistas, embora seja um dado importante, não foi capaz de retirar a esquerda da política brasileira, mantendo-a como força eleitoral de peso. Porém essa vitória da eleição presidencial não se repetiu no âmbito do legislativo e nem da maioria dos Estados da Federação, o que também mostra resiliência da extrema-direita e capacidade de manutenção de posições-chave.
A questão do Peru, onde no final do ano passado um governo com perfil popular foi derrubado após um processo de cerco parlamentar, levando ao poder Dina Boluarte, é diferente da situação brasileira, visto que a queda de Castillho ocorreu por meio de uma “armadilha” institucional. O apoio dos setores populares ao presidente deposto foi demonstrado por grandes manifestações, que sofreram uma repressão muito violenta.
No Paraguai, a vitória do liberal Santiago Peña, um homem com formação nos Estados Unidos e ex-ministro da economia de Cartes, também do partido Colorado, mantém o país submisso às políticas de ajustamento já em curso. Desde a derrubada de Fernando Lugo por um golpe parlamentar (2012) que não há recuperação significativa, do ponto de vista eleitoral, das forças populares e progressistas. Amplia-se, no país, a influência do agronegócio (com muitos empresários brasileiros) e a dependência do comércio de bens importados e “maquiados” destinados aos países da região.
Na Argentina, a recente vitória do autointitulado “anarcocapitalista” Javier Milei, que na verdade reuniu em torno de si as forças políticas comprometidas com a agenda neoliberal, incluindo-se o ex-presidente Macri e a candidata derrotada do “macrismo”, Patrícia Bullrich, revela algumas questões importantes. Em primeiro lugar, mostra que o governo peronista não conseguiu resolver os problemas centrais do povo, em especial os altos índices inflacionários e o empobrecimento acelerado da população. Certamente que essas questões intensificaram-se com o governo de Macri, no entanto a insuficiência das respostas do governo de Fernandez, combinada à intensa campanha dos grandes meios de comunicação – e o lawfare contra Cristina Kischner – abriram espaço para o crescimento de uma figura que se apresentou como “externa” à política e prometeu lutar contra a “casta” dos políticos. Recém empossado, o anarcocapitalista converteu-se rapidamente em gestor dos interesses dos financistas. No dia de hoje, promete anunciar um grande pacote de medidas ultraliberais, que assumidamente trarão mais pobreza ao povo, combinado a medidas de repressão de movimentos sociais e protestos.
Na Argentina desenha-se um quadro preocupante de conflitos distributivos, crise financeira intensa, desregulamentação, perda de direitos e enriquecimento rápido das grandes corporações e financistas. Além disso, a Argentina de Milei parece buscar posicionar-se como aliado preferencial dos Estados Unidos na região.
Outros temas importantes precisariam ser abordados para um completo panorama da região, como o resultado do plebiscito ocorrido do Chile, que recusou um segundo projeto de reforma constitucional, dessa vez com um projeto mais à direita; a cúpula da Amazônia, que colocou um novo patamar o debate sobre os usos dos recursos naturais e sobre a questão climática, gerando expectativa de novos acordos de cooperação regional; as divisões internas ao Movimento ao Socialismo, na Bolívia, e seus impactos para o projeto popular em curso; a provação da entrada da Bolívia no Mercosul pelo parlamento brasileiro; as movimentações dos partidos políticos que historicamente comandaram a Colômbia para desestabilizar o governo de Gustavo Petro; as eleições no Equador, como nova derrota do partido de Rafael Correa e vitória de Daniel Noboa, uma figura alinhada com os EUA e com os receituários econômicos neoliberais; os acordos na Venezuela para realização de eleições; o plebiscito na Venezuela em relação às disputas territoriais na região do Essequibo; a ampliação da influência das petroleiras (com destaque para a Exonn-Mobil) na Guiana, especialmente na região do Essequibo, entre outros temas.
F: Quais foram os principais desafios dessa comunidade de estados no ano que passou?
RC: A América do Sul é uma região marcada por grandes instabilidades, desigualdades sociais profundas e disputas políticas duras, nas quais é frequente a intromissão de interesses externos aos países. A cooperação entre os países - por meio de acordos comerciais, cooperação em infraestrutura e em temas sociais, ambientais e científicos etc. – sofre com os impactos dessas instabilidades. A UNASUL, que tinha grande potencial político para a região, foi destruída pelo “ciclo” de governos de direita que ascenderam na última década – com Temer e Bolsonaro no Brasil, Piñera do Chile, Macri da Argentina, golpe da Bolívia etc. Do mesmo modo, o Mercosul sofre com as oscilações de interesses nos países que integram o bloco, assim como outros instrumentos de cooperação. O grande desafio para a região é a manutenção dos mecanismos de cooperação, tão importantes para o desenvolvimento conjunto dos países. E isso não será possível sem que governos comprometidos com essa agenda possam estabelecer-se de forma duradoura.
F: No jogo de disputas entre China e EUA, a América do Sul pendulou para algum lado?
RC: A América do Sul é vista pelos EUA como sua área de influência “natural”. Nesse sentido, a aproximação da China ocorre sob cerco permanente dos EUA. Porém, é fato que os EUA já não são fonte de investimentos em infraestrutura na região pelo menos desde os anos 1990’s. Esse “vácuo” de investimentos foi ocupado pela China e a região é carente desse tipo de recurso, de modo que é muito difícil para os EUA barrar a expansão chinesa nesse tema. Em outras áreas, os EUA fazem uma disputa cerrada, buscando influenciar politicamente os países, ou mesmo realizando pressão direta e intervenções “suaves” – como o apoio a grupos opositores. Foi o caso da disputa pelo 5G no Brasil, apenas para ficar em um exemplo. Observa-se, nos últimos anos, uma retomada do interesse dos EUA pela região – interesse que esteve muito voltado ao Oriente Médio e à Eurásia na primeira década deste século -, na busca de governos mais “alinhados” com a agenda de Washington e também pela busca de influência na intelectualidade dos países, por meio de financiamentos, bolsas de estudos, produtos culturais, dentre outras medidas destinadas a consolidar a “simpatia” das elites econômicas e intelectuais dos países.
F:Em nível de segurança, como você acha que a questão entre Venezuela e Guiana influenciou o continente?
RC: É uma questão muito delicada, pois disputas territoriais muito frequentemente acabam desembocando em conflitos armados. Some-se a isso o fato de que a região do Essequibo, em disputa há mais de cem anos – a respeito da qual há um tratado assinado pelas partes em Genebra, em 1966, no qual nada se resolveu, apenas adiou-se a questão, com a promessa de se buscar uma solução negociada – vem sendo explorada de forma predatória com a anuência da Guiana.
Há mais de 1.400 lavras de ouro na região, o que impacta imensamente o ecossistema da região e das regiões vizinhas, tanto pelos impactos nas florestas e relevo como pela contaminação por mercúrio; há exploração de petróleo por 3 grandes companhias - ExxonMobil Esso Exploration and Production Guyana Limited (EEPGL), a estadounidense Hess Corporation e a chinesa China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) – numa região extremamente delicada, que é a bacia hidrográfica do Essequibo, com impactos já visíveis na bacia do Orinoco e no mar do Caribe. A Guiana não tem qualquer tipo de regulamentação ambiental e os impactos dessas atividades nos países vizinhos não pode ser evitado.
Então a “disputa” por Essequibo – que é um resultado, diga-se de passagem, do colonialismo inglês em pleno século XX na América do Sul – na verdade é uma questão que não envolve apenas os governos dos países, mas interesses milionários de grandes corporações do petróleo – em especial a estadunidense Exxon.
F: Que panoramas - oportunidades, desafios e tensões - você enxerga para a América do Sul no próximo ano?
RC:Acredito que a questão do Essequibo tende a trazer ainda muita tensão para a região, especialmente pelas razões que já expus. Essa questão do ouro, que não está só lá, mas é também um problema central para o Brasil – haja vista a questão dos garimpos nas terras indígenas, notadamente Yanomami, que está na fronteira com a Venezuela – hoje em dia já envolve outros temas, como as quadrilhas internacionais de drogas e armas. Na Amazônia brasileira o crime organizado está articulado com o garimpo ilegal, pois o ouro é uma forma de lavagem de dinheiro. Isso envolve também milícias e gente muito poderosa. E muito disso passa pela Guiana, que como já comentei, é um país sem muitas normas a respeito dessa extração de minérios.
Outro tema central é a crise econômica argentina, que tende a se aprofundar com o novo governo, e uma crise na Argentina gera muitos impactos para toda a região, por seu tamanho e importância política. No Chile o governo de Boric não conseguiu manter o apoio popular que obteve para eleger-se, além de ter sido derrotado já de saída no primeiro plebiscito constitucional, que era uma agenda importante para o campo do presidente recém-eleito. No Brasil também há muitas dificuldades nas relação do presidente Lula com o congresso e ano que vem as eleições municipais serão um termômetro importante da força dos partidos de direita e de esquerda no país. Na Colômbia o governo de Petro vem sofrendo muitos ataques e isso deve se aprofundar. Ano que vem também teremos eleições para presidente no Uruguai, um país que teve longos anos com a Frente Ampla à frente e agora tem um governo mais à direita. Será importante observar como essa situação atual da região irá impactar na opinião dos eleitores uruguaios.
F:Por fim, se quiser dar uma dica cultural para os nossos leitores!
RC:Para quem se interessa pela América Latina, quero indicar o canal do professor Raphael Lana Seabra, da UnB, intitulado “Teoria Social Latino-Americana”. O Canal traz vídeos sobre os principais pensadores do nosso continente, vale muito acompanhar: