*Matéria publicada originalmente no Substack de Glauco Faria
Em tempos nos quais a extrema direita tem avançado no mundo, os resultados das eleições parlamentares na Polônia, realizadas em 15 de outubro, representam um alento. O partido Lei e Justiça (Prawo i Sprawiedliwosc, PiS) estava no poder desde 2015 e agora obteve 35,4% dos assentos no Sejm, câmara baixa mais poderosa do Parlamento, ante 43,6% das eleições de 2019.
Ainda que tenha 194 das 460 cadeiras, o partido ultraconservador não vai conseguir estabelecer uma coligação que garanta a maioria parlamentar. A oposição deve formar o novo governo com um arco de alianças heterogêneo, que inclui a Coalizão Cívica, de centro-direita, que obteve 30,7%; a centrista Terceira Via, 14,4%, e a Nova Esquerda, com 8,6%.
E chega o momento de inventariar os prejuízos impostos ao regime democrático polonês durante os oito anos de comando dos ultraconservadores. “Muitos danos foram causados à democracia da Polônia, e levará anos para reverter o curso”, sintetiza a professora de Ciência Política da Universidade de Nebraska-Lincoln Patrice McMahon, em entrevista por e-mail, ao analisar o cenário do país pós-derrota do PiS. “Em primeiro lugar, é preciso purgar indivíduos que foram colocados em posições de liderança nos meios de comunicação estatais, órgãos do governo e tribunais, (nomeados) em função da sua ideologia política em vez de suas habilidades”, destaca.
Patrice ainda lembra que o atual presidente, Andrzej Duda, é do Partido Lei e Justiça, e “pode obstruir grandes mudanças”. Na Polônia, além do papel de chefe de Estado encarregado de conduzir a política externa e a política de Defesa, o presidente pode vetar decisões legislativas, embora seus vetos possam ser derrubados por uma maioria qualificada.
O professor associado de Política e Relações Internacionais da Universidade de Nottingham, Fernando Casal Bértoa, também em entrevista por e-mail, destaca dois dos principais legados negativos da passagem da legenda no comando da Polônia. “Eles atacaram principalmente a independência judicial e a liberdade da mídia”, pontua.
Assim como aconteceu em outros países, como Israel, a extrema direita polonesa conseguiu promover diversas reformas no Judiciário, desde 2015, com a finalidade de limitar sua independência, o que causou conflitos com a União Europeia. Normas que davam ao Legislativo, por exemplo, o poder de nomear os integrantes do Conselho Nacional do Judiciário, órgão de supervisão dos magistrados, ou a prerrogativa de designar e mesmo destituir presidentes do Supremo Tribunal. As mudanças também davam ao ministro da Justiça, que também é o procurador-geral, poderes para escolher e demitir juízes de tribunais regionais.
"Há uma literatura emergente sobre o legalismo autocrático — e como líderes e partidos, como o Lei e Justiça, manipulam os tribunais para obter os resultados que desejam. Acredito que isso acontece porque se dá 'por trás das cortinas', de forma gradual e um pouco distante das pessoas comuns. Tecnicamente, nada ilegal está acontecendo, mas ao alterar as regras e colocar certas pessoas em posições-chave, as leis e práticas mudam e a democracia, imperceptivelmente, se dissolve", explica Patrice.
As alterações colocaram a Polônia em choque com a União Europeia. Em 2018, um ato simbólico de resistência ao autoritarismo do governo foi feito pela presidenta da Suprema Corte da Polônia, Malgorzata Gersdorf. Aos 65 anos, ela estava entre os 27 juízes que tinham atingido o limite de idade para o trabalho, já que uma nova lei aprovada pelo governo do PiS reduzia a idade de aposentadoria compulsória de 70 para 65 anos, possibilitando novas nomeações. Ela continuou indo à Corte diariamente, mesmo virtualmente demitida.
Ao fim, esta e outras mudanças promovidas pelo governo polonês acabaram sendo condenadas no Tribunal de Justiça da União Europeia em 2018, quando a Corte apontou que os princípios do Estado de direito haviam sido violados no país. A coligação governista acabou aprovando uma emenda no final daquele mesmo ano, recuando deste e dos outros pontos apontados na decisão.
Em junho deste ano, houve uma nova decisão do Tribunal contra o governo polonês devido à lei que alterou a organização dos tribunais ordinários, administrativos e do Supremo Tribunal, promulgada em dezembro de 2019. A Corte considerou que as alterações promovidas não respeitavam a separação de poderes e o princípio da imparcialidade.
Aposta no preconceito
Como boa parte das justificativas utilizadas pela extrema direita no mundo, as mudanças no Judiciário se baseavam supostamente no “combate à corrupção” e, no caso polonês, também para remover pessoas que seriam ligadas ao antigo governo comunista do país. Mas o autoritarismo e a violação de direitos por parte do PiS não se limitavam ao Judiciário.
Em março de 2019, a cidade de Swidnik declarou o seu território como "zona livre da ideologia LGBT", sendo seguida por cem outras localidades no país que fizeram o mesmo. O PiS defendia uma espécie de “cidadania limitada” para as pessoas LGBTQIA+, que não deveriam manifestar suas identidades de gênero e orientações sexuais na esfera pública.
O Parlamento Europeu adotou uma resolução em dezembro daquele ano apontando para a discriminação e, em dezembro de 2020, a presidenta da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, pontuou que “zonas livres de ideologia LGBTQIA+ são zonas livres de humanidade”, afirmando que não seriam aceitas na União Europeia. Nova resolução, agora em março de 2021, condenou novamente a iniciativa, fazendo com que boa parte das cidades voltasse atrás.
Os direitos das mulheres também foram alvo. Com uma composição dominada politicamente pelo PiS, o Tribunal Constitucional decidiu, em janeiro de 2021, restringir o direito ao aborto legal na Polônia, proibindo a interrupção da gravidez em casos de malformação do feto, com permissão somente em casos de estupro e incesto, ou se a vida ou a saúde da mãe estiver em risco.
A participação dos jovens e das mulheres
Para determinar a derrota da extrema direita, alguns ingredientes presentes nas eleições polonesas são comuns a outros países em que ela perdeu eleições, como a participação maior das pessoas e a forte reação das mulheres.
Com quase 74% de comparecimento às urnas, a Polônia registrou a maior participação eleitoral desde 1919, superando inclusive a das primeiras eleições após a queda do comunismo em 1989. E quase 75% das mulheres elegíveis votaram, representando um aumento de 12% em relação a 2019. Como destaca Patrice, houve ainda um número recorde de candidatas femininas (44%) e o maior percentual de mulheres (30%) já votadas no Sejm.
Os números indicam que isso se deve em boa parte à ofensiva contra os direitos das mulheres promovida pelo PiS. Segundo pesquisa realizada pelo veículo OKO.Press, 75% dos poloneses apoiam a legalização do aborto até a 12ª semana de gravidez.“O partido de Esquerda, que é predominantemente apoiado por eleitoras mulheres, e a Coligação Cívica, que se deslocou para a esquerda nos últimos anos, se beneficiaram disto”, avaliou o analista político da Universidade de Varsóvia Bartlomiej Biskup, ao Deutsche Welle.
Os jovens também foram fundamentais na mudança: 69% compareceram à urnas, em comparação com 46% nas eleições de 2019. Em artigo, o historiador e professor da Academia Polonesa de Ciências Tom Junes destacou que, em 2019, o PiS havia ficado em primeiro lugar entre os eleitores entre 18 e 29 anos de idade, com 26,3% dos votos. Agora, teve somente 14,9%.
“As pessoas em democracias não podem mais dizer ‘meu voto não importa’. Isso simplesmente não é verdade. E não se trata apenas de votar, o que é importante para a democracia são as conversas informais, atividades e projetos — a participação e o engajamento informais importam”, aponta Patrice McMahon.
A luta não acabou
Ainda em novembro, o presidente polonês Andrzej Duda precisa decidir quem deve formar o governo. Por tradição, a primeira escolha será o PiS, por ter sido o partido mais votado. Sem maioria, os parlamentares deverão nomear um primeiro-ministro alternativo, que, ao que tudo indica, será Donald Tusk, de centro-direita, que já foi primeiro-ministro entre 2007 e 2014. A expectativa é que ele retire as restrições ao aborto legal e formalize o direito de casais homoafetivos formarem parcerias civis legalmente reconhecidas.
Mas não será um caminho tranquilo, a começar pela própria dificuldade em conjugar interesses dentro de uma aliança tão ampla. “É muito difícil, uma vez que a coalizão vai desde o partido radical de esquerda Razem até o partido democrata-cristão Polônia 2050. É provável que se desintegre antes do final da legislatura”, analisa Fernando Casal Bértoa.
Para o professor da Universidade de Nottingham, o verdadeiro teste começa agora. “Eu não acredito que as eleições polonesas ofereçam alguma lição. O PiS não foi derrotado. Pode voltar ao poder em quatro anos. A lição deve ser aprendida agora, depois que a oposição assumiu o poder. Se Tusk conseguir manter o poder em 2027, então tenho certeza de que teremos aprendido alguma coisa”, pontua.
“Não devemos esquecer que, ao contrário do que foi observado em outros países, o Lei e Justiça é o principal partido político de direita no país. Foi o PiS que absorveu dois partidos populistas no final dos anos 2000. Ele continua a representar um importante grupo da população polonesa nacionalista e conservadora”. destaca ainda Bértoa.
Além de ser um partido com expressão na sociedade polonesa, a legenda usou métodos no poder que devem continuar sendo praticados mesmo fora dele, como a circulação de fake news. “A televisão pública e os sites do governo frequentemente criticavam a oposição e faziam afirmações falsas... E regularmente mostravam, por exemplo, o líder da oposição, Donald Tusk, falando em alemão enquanto o acusavam de ser um fantoche do governo da Alemanha”, lembra Patrice McMahon.
Uma vez derrotada eleitoralmente, a extrema direita seguirá atuando e o caminho para o avanço da democracia ainda será árduo na Polônia. Serve também para o Brasil.