BRASIL NO MUNDO

É constrangedor que a Alemanha tenha pedido para Lula ajudar a Ucrânia na guerra, diz especialista

Em entrevista à Fórum, o professor Giorgio Romano, da UFABC, analisa o encontro entre Lula e o chanceler alemão Olaf Scholz e fala sobre a posição do Brasil com relação à guerra entre Rússia e Ucrânia

O chanceler alemão Olaf Scholz e o presidente Lula.Créditos: Ricardo Stuckert
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A visita do chanceler alemão, Olaf Scholzao presidente Luiz Inácio Lula da Silva na segunda-feira (30) marcou mais uma importante etapa da reinserção do Brasil no cenário global após o obscurantismo diplomático imposto pelo governo de Jair Bolsonaro.

A Alemanha e o Brasil têm interesses econômicos em comum, como o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, e políticas relativas à preservação da Amazônia e mudanças climáticas - não à toa, a potência europeia repassou R$ 1 bilhão para serem usados pelo governo Lula em ações ambientais, sendo que grande parte deste montante será injetada no Fundo Amazônia. 

Esses assuntos estiveram na pauta da conversa entre Lula e Scholz. Um outro tema, porém, dominou as manchetes de parte da imprensa brasileira e europeia após a reunião entre os dois líderes: a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que está prestes a completar 1 ano. 

Uma parcela da mídia hegemônica no Brasil e na Europa têm classificado a posição de Lula em não querer declarar apoio explícito à Ucrânia e nem mesmo enviar munições para serem usadas na guerra como "polêmica" e alardeado que, supostamente, essa postura poderia, no futuro, frustrar os planos do presidente de selar acordos comerciais com o bloco europeu. 

O foco na posição do Brasil se dá pelo fato de que a vinda de Scholz ao país ocorreu justamente uma semana após a Alemanha anunciar o envio de tanques à Ucrânia para serem utilizados na guerra e dias depois do país europeu pedir ao Brasil ajuda com munições. Os alemães sofrem diretamente as consequências do conflito, já que têm forte dependência do gás russo, cortado poucos meses após a invasão ao território ucraniano. 

"Brasil não vai passar munições" e "Quando um não quer, dois não brigam" 

Em coletiva de imprensa após a reunião bilateral, Scholz e Lula falaram sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia. O chanceler alemão, apesar de não ter citado explicitamente o pedido de seu governo - já negado - para que o Brasil enviasse munições a serem usadas contra os russos, sinalizou esperar uma tomada de posição do presidente brasileiro ao dizer que o conflito não é somente "uma questão europeia". 

"É importante enfatizar que essa guerra não é uma questão europeia, mas uma questão que nos diz respeito a todos, pois é uma violação flagrante do direito e da ordem internacional que acordamos em conjunto. Ninguém pode alterar fronteiras de forma violenta, isso pertence ao passado. A soberania dos Estados é inviolável, é algo que nos une e deve ser novamente nosso objetivo. Temos que nos unir nessa questão para evitar o retorno à lei do mais forte", disse Scholz. 

Em maio de 2022, três meses após a eclosão do conflito, Lula havia dito, em entrevista à revista estadunidense Time, que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, "é tão responsável pela guerra quanto o [presidente russo Vladimir] Putin". “Qual é a razão da invasão da Ucrânia? É a Otan? Os Estados Unidos e a Europa poderiam ter dito: ‘A Ucrânia não vai entrar na Otan’. Estaria resolvido o problema”, declarou à época. 

Um jornalista, durante a coletiva de imprensa de segunda-feira (30), então, questionou Lula se ele mantém essa posição. O presidente brasileiro disse que a Rússia está errada em invadir o território ucraniano, ponderando, contudo, que "quando um não quer, dois não brigam" - frase que gerou grita entre parte da mídia comercial brasileira e europeia. 

Em sua resposta, o presidente brasileiro fez referência a uma declaração do Papa Francisco, endossada por especialistas em Relações Internacionais, que apontam o desrespeito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a acordos feitos com a Rússia ao encampar operações militares próximas à fronteira com a Ucrânia nos anos que antecederam o início do conflito. 

"Naquela época eu disse uma coisa que ouvi minha vida inteira: quando um não quer, dois não brigam. Até naquele momento, quem não vive na região não entendia muito bem o porquê aquela guerra estava existindo. Uns diziam que era por conta da Otan se instalar na divisa com a Rússia. Me lembro de um discurso do Papa Francisco que as pessoas não podiam esperar que os russos ficassem quietos após colocarem um cão latindo na sua fronteira. Hoje, eu tenho mais clareza da razão da guerra, acho que a Rússia cometeu o erro clássico de invadir o território do outro país, portanto a Rússia está errada. Mas continuo achando que, quando um não quer, dois não brigam. É preciso que queiram paz. E até agora, eu, sinceramente, tenho ouvido muito pouco sobre como encontrar paz para a guerra", afirmou Lula. 

Em outro momento da coletiva, Lula reforçou sua negativa ao pedido da Alemanha para o Brasil enviar munições à Berlim que, depois, seriam repassadas ao exército ucraniano.

"O Brasil não tem interesse em passar munições para que seja utilizadas na guerra entre Ucrânia e Rússia. O Brasil é um país de paz. O último contencioso nosso foi na Guerra do Paraguai, e portanto o Brasil não quer ter qualquer participação, mesmo que indireta. Neste instante, no mundo, nós devemos procurar quem é que pode ajudar a encontrar a paz entre Rússia e Ucrânia. Nós precisamos encontrar alguém, porque até agora a palavra paz é muito pouco utilizada", sentenciou o presidente brasileiro. 

"É constrangedor que a Alemanha tenha pedido isso" 

Em entrevista à FórumGiorgio Romano Schutte, especialista em Relações Internacionais que compõe o Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil da Universidade Federal do ABC (OPEB/UFABC), classificou o pedido da Alemanha para o Brasil enviar munições à Ucrânia como "constrangedor", defendendo a posição adotada pelo presidente Lula. 

"O Brasil não entra nem de forma direta e nem indireta em nenhuma guerra que não seja no âmbito das operações das Nações Unidas. Evidentemente [a guerra na Ucrânia] não é o caso e, portanto, Lula agiu não só de acordo com os princípios da esquerda, do PT, mas de acordo com os princípios da diplomacia brasileira. Não há nenhuma surpresa, nenhuma dúvida. É até constrangedor que a Alemanha tenha pedido isso. É bastante negativa essa pressão, não cabe desrespeitar a posição do Brasil, que o Lula deixou muito clara desde o primeiro momento", analisa o professor. 

"Na primeira reação, Lula criticou o uso das armas pra resolver essa questão da invasão russa, criticou várias vezes, e ele tem uma visão mais global, ele sabe das hipocrisias da Otan, das operações militares da Otan, desde o bombardeio de Belgrado em 1999, o caos que deixou no Afeganistão, na Líbia... Então, é preciso resolver isso de outra forma, e o Brasil se junta a essa posição, que é bastante difundida no Sul. A Europa precisa refletir o porquê o Sul não se aliou automaticamente à Otan, tem motivos fortes para isso, o que não significa de nenhuma forma concordar com a violação da integridade territorial, como aconteceu", prossegue Giorgio Romano. 

Durante a reunião, Lula sugeriu a Scholz a criação de um grupo de países para mediar uma negociação de paz entre Rússia e Ucrânia. “O que é preciso é constituir um grupo com força suficiente para ser respeitado numa mesa de negociação. E sentar com os dois lados (...) Nossos amigos chineses têm um papel muito importante. Está na hora da China colocar a mão na massa (...) Temos que criar outro organismo, da mesma forma que criamos o G20, quando aconteceu a crise econômica em 2008, queremos propor um G20 para pôr fim ao conflito Rússia e Ucrânia”, aconselhou. O mandatário ainda se colocou à disposição para, se preciso, conversar com Putin e Zelensky.

Para Giorgio Romano, porém, "neste momento não faz nenhum sentido pensar no Brasil assumir qualquer protagonismo na questão Rússia-Ucrânia, por vários motivos". "Na questão do Irã, tinham vários motivos, inclusive porque se tratava de acordo nuclear, e o Brasil tem sua tecnologia nuclear, assinou o tratado de não proliferação, mas o anexo que eles inventaram depois para dar acesso às instalações que o Irã negou, o Brasil também negou. Então, tinham várias coisas que faziam sentido naquele momento, o governo já estava na segunda parte de seu segundo mandato. Agora estamos no início do governo, há muitos problemas, questões aqui na região a resolver, a pacificação do Peru, a normalização das relações com a Venezuela, a retomada das campanhas contra as sanções a Cuba, que já passaram dos limites", avalia.

"Sobretudo porque ninguém pediu [a ajuda do Brasil para mediar o conflito]. Acho que o Brasil precisa estar muito ativo na questão da Venezuela, Colômbia, Peru… E depois, ao longo do tempo, tem questões importantes, retomada do BNDES, etc. Prioridades. Outra coisa é se houver uma demanda específica das parte, se Putin ou Zelensky indicam Lula para intermediar, aí são outros quinhentos. Mas acho que não é o caso agora", conclui o especialista em Relações Internacionais. 

Os significados da reaproximação Brasil-Alemanha 

Giorgio Romano explica que a visita de Olaf Scholz a Lula tem inúmeros significados, a começar pela proximidade de seu partido, o SPD (Partido Social-Democrata) com a esquerda e centro-esquerda brasileira e a postura crítica da Alemanha ao governo Bolsonaro.

"O Partido Social-Democrata da Alemanha sempre manteve uma postura muito crítica ao governo, mesmo na época do [Michel] Temer, mas sobretudo diante de Bolsonaro. A [Angela] Merkel também não gostava de Bolsonaro, e há uma relação histórica com o SPD, que recebeu o Lula. Lideranças do SPD, inclusive, visitaram Lula na prisão. Há uma certa identificação, vamos dizer assim. A Alemanha espera encontrar no Lula um parceiro, então isso explica inclusive o porquê o Scholz veio tão rápido fazer uma visita ao Brasil, no primeiro mês, mesmo depois que o presidente [da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier] já tinha vindo na posse", diz o professor. 

A declaração de Scholz ao abrir a coletiva de imprensa após a reunião, inclusive, confirma a análise de Giorgio Romano. “Estamos muito felizes com o Brasil de volta à cena mundial. Vocês fizeram falta, meu caro Lula”, disse o chanceler. 

O professor de Relações Internacionais, contudo, disseca quais são os interesses que de fato estão por trás da vinda do líder alemão ao Brasil. "A Alemanha que está numa situação muito complicada por causa da guerra na Ucrânia, está passando por uma enorme crise até mesmo de identidade, porque toda sua confiança na relação com a Rússia, com Putin, ficou numa posição difícil, difícil com relação à energia, economia... Conseguiu resistir, não teve recessão porque é um país rico, teve capacidade de reagir, mas evidentemente há fortes dúvidas sobre como vai ficar a economia da Alemanha, não tendo mais acesso ao gás confiável, barato e seguro. Então, está procurando saídas políticas para ampliar os contatos e não ser simplesmente jogada nos braços dos EUA, que evidentemente é um aliado e está na Otan, mas a Europa e Alemanha em particular querem uma certa autonomia. Contatos com países terceiros como, por exemplo, o Brasil são parte dessa estratégia", assegura. 

Segundo Giorgio Romano, com relação à questão da energia, a Alemanha enxerga no Brasil um potencial exportador de seu hidrogênio, que seria utilizado para transformar energia renovável, como as eólicas e solar, em combustível. "Há uma grande expectativa que isso pode ser uma substituição do gás da Rússia, mas também alternativas ao fornecimento dos EUA. Aí está uma pauta que interessa às empresas da Alemanha para estarem presente no Brasil, já que a Petrobras até agora não se mexeu. Há outras empresas que estão explorando isso pelo Nordeste", afirma.

Verbalizada tanto por Lula quanto por Scholz, a proposta de um acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia é outra pauta que interessa, segundo o especialista, tanto ao Brasil quanto à Alemanha. O professor pondera, no entanto, que o governo brasileiro precisa ter cuidado para que o acordo atenda também às suas demandas no âmbito da indústria e tecnologia. 

"Este acordo interessa sobretudo ao Brasil, exportadores de matérias-primas, agroexportadores, soja, carnes, etanol, e também minério de ferro, e do outro lado interessa à Alemanha e Europa, com indústria, indústria automobilística, química.. Por muito tempo ficou meio parado, mas agora a Alemanha se mexeu, se mexeu porque está vendo uma concorrência forte da China no Mercosul, teve que entender que Mercosul não é quintal dos EUA no ponto de vista econômico. No Mercosul a maioria do capital investido é europeu. Essas empresas europeias, porém, estão começando a sofrer a concorrência da China. Pode ser interessante para o Brasil? Sim. Mas talvez seja necessário fazer algumas mudanças importantes porque o Brasil também quer ser um país com indústria, tecnologia e inovação. Isso deveria estar nesse acordo", pontua. 

"A matriz do acordo, não há nenhuma dúvida, é neocolonial. Se é melhor que nada, são outros quinhentos. Acho que, considerando a necessidade da Alemanha de avançar nessa parceria, necessidade política, geopolítica, econômica, há uma margem de negociação, mas tem que definir rápido o que o Brasil quer realmente de sua política industrial e tecnológica e quais as cláusulas do acordo que conflitam com isso. É legítimo entender que interessa muito ao Brasil estreitar essa parceria, mas é preciso defender bem os interesses desse projeto do governo Lula que tem a reindustrialização, com inovação, tecnologia e questão ambiental forte", assevera o especialista.