GUERRA NA EUROPA

“Expulsou Napoleão e venceu nazistas. Rússia põe medo na Otan”, diz historiador

Ucrânia estaria para a Putin como o México está para Biden. Superpotência nuclear que herdou a expertise soviética e séculos de belicismo peitou o Ocidente, que não sabe o que fazer

Parada militar em Moscou (Russian Presidential Press and Information Office/TASS).
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A Rússia tem uma forte tradição militar e uma história de triunfos em conflitos bélicos que fazem com que a gigantesca nação euroasiática, especialmente por ser herdeira natural da poderosíssima União Soviética, seja temida por seus inimigos. E isso não vem de agora.

Diante da invasão ao território da Ucrânia, iniciada na madrugada desta quinta-feira (24), líderes de países europeus e o presidente norte-americano Joe Biden ficaram perplexos com a agressividade e agilidade impostas pelas forças russas no ataque fulminante desfechado contra a nação vizinha. A justificativa de Moscou para o avanço militar assustador é a aproximação do governo de Kiev da Otan, a aliança militar do Ocidente que foi criada em 1949 justamente para se contrapor à então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O historiador Marcelo Cardoso da Silva, formando na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e atuando na docência há mais de 20 anos, explica que a fama e histórico de vitórias expressivas em guerras notáveis dos russos sempre alimentaram uma espécie de temor, ou receio, em seus inimigos, não só no passado.

“A Rússia é uma potência histórica, que se diferencia da maioria das outras potências por ter conquistados territórios vizinhos, montando um grande império colonial próximo de suas fronteiras já desde o século XV. A sua força militar é produto de investimentos maciços históricos, reforçado por uma cultura de povos que têm como marca sua expressão bélica acentuada. Para a maioria de nós do Ocidente, há dificuldade para entender seus pensamentos e suas instituições. Acreditamos muitas vezes que são um bando de bêbados valentes que conseguiram expulsar Napoleão no século XVIII e os nazistas no século XX devido à sua quase ‘selvageria’ e a ajuda do tal “general inverno”, como se nada disso tivesse sido realizado por uma força militar organizada, treinada e disciplinada”, explicou Cardoso.

A formação do gigante russo também é antiga e seria fruto de uma mentalidade belicista que esgarçou os limites da nação que há séculos é a maior em extensão territorial no planeta.

“A Rússia se envolveu em dezenas de conflitos, que podem ser maiores ou menores. Vou voltar um pouco antes dos últimos 300 anos para dizer que em 1721 foi fundado o Império Russo. E foi sob mando de Catarina, a Grande, que a Rússia resolve se expandir em direção ao oeste, invadindo a Ucrânia, e depois a leste, fortalecendo assim os seus interesses na Ásia Central”, exemplificou o historiador.

Em relação ao período de ostracismo vivido pela nação comandada hoje por Vladimir Putin após o fim da União Soviética, o professor explica que a condição de superpotência militar não se esvaiu com o fim da União Soviética, em 1991.

“A máquina militar russa não é algo que vem de agora, e tampouco foi desmontada após o fim da chamada Guerra Fria. Os investimentos foram reduzidos drasticamente nos últimos anos, mas o seu desenvolvimento tecnológico conseguido a partir dos projetos soviéticos não foi esquecido. Lembrando que a Rússia tem participado ativamente da disputa pela hegemonia na sua região e fora dela, como na Síria recentemente. O que podemos dizer, conhecendo o histórico militar dos EUA, é que se os russos não tivessem esse potencial monumental já teriam sido atacados pelas forças norte-americana há muito”, disse.

Sobre a queda de braço com o Ocidente, Cardoso explica que os medos são mútuos, mas que EUA e Europa sabem da capacidade militar russa e que a ação desta madrugada na Ucrânia mostrou isso. A História também tem algum peso e cria uma atmosfera de receio quando essas nações lembram dos triunfos de Moscou.

“Como disse, a Rússia expulsou Napoleão e derrotou o temido exército nazista de Hitler. É claro que a Rússia põe medo na Otan e não é à toa. Mas a Rússia de certa forma também teme a Otan. Devemos lembrar que dentro desse processo todo que estamos acompanhando os dois lados ficaram se estudando, buscando saídas diplomáticas, e isso é uma clara demonstração de, no mínimo, respeito entre as partes envolvidas.”

Sobre a possibilidade de algum país ocidental entrar diretamente na guerra desencadeada por Putin, o entrevistado considera que isso não é nada provável. O que pode vir pela frente, segundo ele, são sanções agressivas e muitas rodadas de negociação em nível diplomático.

“É muito difícil afirmar que alguém se meterá militarmente nisso. O que aparentemente vai acontecer é uma tentativa de conciliação diplomática forçada pelo poder econômico do Ocidente, tentando sufocar a Rússia justamente onde ela é mais frágil. As questões que envolvem um conflito assim, de cunho geopolítico, aparentemente não trariam benefício a nenhum dos lados, principalmente diante dos problemas econômicos sentidos diante da longa pandemia de Covid-19 enfrentada por todos”, opina.

Questionado sobre como explicar as ações da Rússia a quem não está familiarizado com a forma de agir do Kremlin, o historiador traça uma analogia bem pedagógica sobre o conflito.

“No Ocidente, de fato, não temos muito conhecimento sobre como funciona o pensamento russo. Para que se compreenda o que se desenrolou, e guardada as devidas proporções, seria como a relação da Rússia com a Ucrânia seria como a existente entre os EUA e o México. Imagine os russos se aproximando militarmente do México e apoiando grupos armados antiamericanos. É algo semelhante ao episódio que resultou na tentativa da invasão da Baía dos Porcos e a Crise dos Mísseis, na década de 1960”, finalizou Cardoso.