Fazia sol naquela manhã de fim de verão em Nova Iorque, a cidade símbolo da opulência do império capitalista dos Estados Unidos da América. No entanto, mesmo com o fluxo frenético de turistas, com o trânsito enlouquecedor e caótico da metrópole, com as cadeiras dos cafés lotados espalhadas pelas calçadas e com o vai-e-vem dos engravatados homens de negócios, às 8h46 o mundo mudaria para sempre.
Um Boeing 767 da American Airlines, com 92 pessoas a bordo, se espatifa e vira uma gigantesca bola de fogo na porção mais alta da Torre Norte do World Trade Center, uma das “torres gêmeas”, ex-libris do horizonte novaiorquino, recheado de arranha-céus. Apenas 14 minutos depois, às 9h03, um segundo avião, do mesmo modelo, mas operado pela United Airlines, com 56 passageiros e nove tripulantes, desaparece no interior da Torre Sul, causado uma explosão colossal, transmitida ao vivo pelas redes de televisão.
Mais 34 minutos se passam e, às 9h37, chega a informação que mais uma aeronave, também da United, com 64 pessoas, se chocara contra o Pentágono, o edifício localizado em Washington que é o centro nervoso da mais poderosa máquina de guerra que a humanidade já conheceu. Por fim, mais um Boeing da United Airlines, às 10h03, cairia numa área rural do estado da Pensilvânia, matando todos os 44 ocupantes. Seu destino, segundo investigações exaustivas, era a Casa Branca, a sede da presidência dos EUA.
O que se seguiu à fatídica manhã ensolarada foi uma onda de medo e desespero. As imagens de pessoas se jogando pelas janelas do WTC para fugir da morte por incineração, de bombeiros que entraram nas torres e que nunca mais foram vistos e de silhuetas humanas cobertas de cinzas perambulando por ruas soterradas de escombros jamais foram apagadas do inconsciente de quem testemunhou o caos no coração da cidade que melhor representa o american way of life.
O desenrolar desses fatos surreais, que resultaram na morte de 2.996 pessoas, era apenas o início de um evento aparentemente cinematográfico que levaria a duas guerras sangrentas e que deixaram mais de 800 mil mortos, no Iraque e no Afeganistão.
O professor Reginaldo Nasser, mestre em Ciência Política e doutor em Ciências Sociais, livre-docente na PUC-SP e que atua no programa de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, composto por Unesp, Unicamp e PUC-SP, concedeu entrevista à Fórum para explicar os impactos permanentes trazidos pelos atentados terroristas mais mortíferos da História, que do dia para noite mudaram as redes de relacionamento entre nações mundo afora.
Nasser é autor do livro “A Luta Contra o Terrorismo: os Estados Unidos e os Amigos Talibãs”, publicado pela editora Contracorrente, que aborda os 20 anos de sucessivos episódios relacionados ao 11 de setembro, mas que segundo o acadêmico, não podem ser analisados unicamente pela lente dos EUA.
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Fórum – Os atentados de 11 de setembro realmente mudaram a forma de se relacionar das nações, sobretudo com os EUA, como dizem? Foi um evento de ruptura que demarcou o início de uma nova era nesse campo?
Prof. Nasser – “Mais do que os atentados de 11 de setembro, o que realmente mudou o mundo foram as reações aos atentados. Aquilo que os EUA fizeram logo a partir do dia 12 de setembro, e continuaram por vários anos, foi o que mudou o mundo. Veio a Guerra do Afeganistão, com 20 anos de ocupação e milhares de mortos, e depois veio o Iraque, com mais milhares de mortes, refugiados, uma crise econômica violenta, além de vários outros países onde os EUA agiram pontualmente. E eu diria que muitas outras nações se aproveitaram disso.”
Fórum – O que a invasão do Afeganistão, e na sequência do Iraque, mostraram sobre as intenções dos EUA no universo da geopolítica?
Prof. Nasser – “Seja lá qual for a nação, ela tem seus inimigos internos e externos, e isso alimentou o argumento de que tudo era combate ao terrorismo. A Rússia, por exemplo, tinha lá seus problemas com os chechenos, a China com os uigures, a Índia na Caxemira, e até mesmo o que aconteceu com os movimentos sociais no mundo, quando qualquer tipo de ação passou a ser vista como terrorismo. A partir daí, foram implementadas em vários lugares legislações não só rigorosa, mas que passam a violar toda forma de liberdade de expressão, de opinião, pela invasão de privacidade, as prisões sem indícios, enfim. As consequências do 11 de setembro estão aí, estão dispersas, difusas, não foram só as guerras no Afeganistão e no Iraque. Isso permeou por toda parte, nas polícias, nos judiciários, até mesmo nos casos de lawfare, que por exemplo atingiu diretamente a classe política no Brasil. A partir daí, a questão da guerra foi transferida para o inimigo interno.”
Fórum – A relação do Ocidente com o mundo árabe mudou exatamente como a partir do 11 de setembro?
Prof. Nasser – “Quando a gente fala da relação dos EUA com o mundo árabe, nós precisamos tomar cuidado, porque há as elites e o resto do povo. As elites árabes sempre se deram muito bem com os EUA, com a França, com a Inglaterra, nas perspectivas econômicas e políticas, afinal, os EUA não fizeram todas essas invasões contra todos os segmentos da sociedade. A elite iraquiana, por exemplo, assim como uma elite afegã, apoiou os EUA. Os países do Golfo Pérsico, com suas elites, apoiaram os EUA... O Egito, a Jordânia... Mas a sociedade, não. São essas sociedades que sofreram como isso. Veja o caso da Síria, que está destruída. O Afeganistão, o Iraque e a Líbia acabaram enquanto nações, no Egito há uma ditadura. Então, eu diria que as relações dos EUA com as elites, vão muito bem, mas com o povo desses países, não.”
Fórum – Eles realmente queriam combater esses grupos e o crescente fundamentalismo islâmico... Mas quais intenções e planos foram colocados em prática após a instauração dessas duas guerras?
Prof. Nasser – “Se nós olharmos para os atos do 11 de setembro, em si, nós vamos notar que os 18 homens que cometeram os atentados eram sauditas, egípcios e iemenitas, e nenhum afegão, e diante disso os EUA tiveram que encontrar uma estratégia para atacar o Afeganistão, sob um primeiro argumento que dizia não haver diferença entre quem abriga terroristas e quem é terrorista, porque a Al-Qaeda estava dentro do Afeganistão. Mas isso era algo inédito dentro do direito internacional. Aí vem a desculpa de que eles (os terroristas) prepararam o ato dentro do Afeganistão... Mas afinal, eles prepararam o quê? O líder dos atentados, Mohamed Atta, morava na Alemanha. Como se prepara um atentado complexo, com Boeings, nos campos do Afeganistão? Isso não fazia sentido algum. Apesar disso, todos os governos do mundo, exceto o do Iraque, apoiaram os EUA. A ONU sequer exigiu que os EUA fossem ao Conselho de Segurança, ou à Assembleia Geral, entendendo que era legítima defesa. E o que se sabe sobre isso hoje, é que os EUA já tinham essa intenção de ocupar o Afeganistão e depois o Iraque, e é inequívoco dizer que estas ações aumentaram o número de grupos e organizações terroristas. Isso sem falar na falácia de que os grupos terroristas atacam sempre o Ocidente, já que os dados mostram que 85% dos ataques desse tipo são em países muçulmanos e matam muçulmanos. Os EUA se aproveitaram dessas circunstâncias, com o apoio de toda a sociedade e de todo Congresso norte-americano, onde só uma deputada votou contra (as invasões), e deram carta branca para que eles fizessem isso.”
Fórum – No mundo de hoje, uma ameaça aos EUA, ou aos seus aliados do Ocidente, nos moldes daquilo que ocorreu em 11 de setembro de 2001, ainda é plausível? Poderia voltar a ocorrer naquela dimensão?
Prof. Nasser – “Curioso que o 11 de setembro passou a ser usado como um padrão, tudo que acontecia seria no formato do 11 de setembro. Mas se nós fomos olhar, o que ocorreu no 11 de setembro, e a forma como ocorreu, foi uma exceção. Houve atentados depois, como o de Madri e o de Londres, e vários outros no mundo islâmico, mas nenhum deles na proporção do 11 de setembro. Além disso, a partir daí, os EUA e todos os seus aliados aprimoraram os seus serviços de segurança e de inteligência, se tornando cada vez mais arbitrários, porque eles agem cada vez prendendo um número maior de pessoas, agindo contra a privacidade das pessoas, como justificativa para aumentar a segurança. O que dá pra dizer é, nós sempre jogamos com a questão do possível e do provável. É possível que possa ocorrer um atentado daquela dimensão de novo? É possível. Mas é muito improvável que volte a acontecer.”
Fórum – Há uma cicatriz grande na sociedade norte-americana por conta do 11 de setembro? Se sim, como isso afetou para sempre a forma desse povo viver?
Prof. Nasser – “Eu diria que o país mais afetado por isso tudo, realmente foram os EUA. Mas o problema maior foi como o governo conduziu tudo isso. Como eu já disse, as leis de exceção, a vigilância, como já foi denunciado pelo (Edward) Snowden, e esse esquema continuam montados, mas também, e eu acho importante frisar isso porque as pessoas de um modo geral não olham pra isso, que foi permitir a ascensão de uma extrema direita. O (Donald) Trump, os grupos que estão ao seu redor e toda essa doutrina, as atitudes, a invasão do Capitólio, enfim, tudo isso veio crescendo num ambiente de ódio e de radicalismos, com a desculpa de se estar combatendo o mal, e dessa maneira eu entendo que deixou consequências muito fortes e marcantes na sociedade norte-americana. Se a gente olhar o (George W.) Bush, e eu me lembro à época que nós o colocávamos lá na extrema direita... E hoje o Bush, perto do Trump e de seus aliados, é uma pessoa razoável, equilibrada, moderada, mas isso não é porque o Bush mudou, é que hoje ele tem um extremo comparativo ao seu lado. Isso é uma consequência de tudo isso, dessa negação e desse ódio aos islâmicos.”
Impactos na América Latina e no Brasil
Os eventos de 11 de setembro de 2001 impactaram todo o mundo, mas acarretaram mudanças peculiares na América Latina, uma região onde questões relacionadas ao universo islâmico e árabe nunca ganharam relevo mais expressivo. A presença de uma comunidade pujante de imigrantes desses países na região da Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai) fez com que os olhos do Grande Irmão do Norte se voltassem para cá.
Para entender como se deu essa mudança de cenário por aqui, a reportagem da Fórum foi ouvir a socióloga Ana Prestes, mestre e doutora em Ciência Política pela UFMG, que atua há anos dando assessoria internacional.
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Fórum – De que forma o 11 de setembro impactou as relações internacionais de um modo geral? Aquela afirmação de que o mundo deixou de girar exclusivamente em torno das relações econômicas, para gravitar também ao redor da questão da segurança, é um fato?
Ana Prestes – O 11 de setembro impactou completamente nas relações internacionais e o tema da segurança passou para o centro da mesa. O tema do terrorismo passou a figurar entre os primeiros da agenda da ONU, por exemplo, embora os EUA não estivessem ligando a mínima para a ONU. Reforçaram a ação da OTAN, isso sim, com mudanças internas para ampliação da abrangência e possibilidades de atuação da aliança. O unilateralismo dos EUA foi reforçado e eles ganharam respaldo internacional para promover intervenções militares de caráter preventivo, segundo a nomenclatura deles, e que justificou as invasões do Afeganistão e do Iraque. A indústria armamentista em todo o mundo disparou, provocada pela corrida americana ao militarismo (gerando mais caos e instabilidade). Para reconquistar sua segurança interna, os EUA promoveram quase que uma exigência global de que o mundo inteiro entrasse na comoção generalizada pelo que tinha ocorrido com eles em seu solo (homeland) e por consequência de uma luta cavada justamente por eles. Internamente, nos EUA, a segurança nacional passou a ser o principal tema e externamente a prevenção ao terrorismo. E o resto do mundo que se adequasse. Essa foi a tônica dada para as relações internacionais a partir dali. Era o começo da doutrina Bush e do "ou estão conosco, ou estão contra nós".
Fórum – Como esse evento de relevância mundial afetou a América Latina?
Ana Prestes – A década anterior, dos anos 90, havia sido de grande presença dos EUA na América Latina via implantação do Consenso de Washington e coordenação com governos lacaios dos imperialismos locais. Mas com a virada do século, justamente por um processo popular de reação à essa agenda, começaram a emergir governos de esquerda na América Latina. Com Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina, Tabaré Vasquez no Uruguai, Lula no Brasil, mais tarde Evo na Bolívia, Correa no Equador, Lugo no Paraguai e outros. Mas com o 11 de setembro e a absorção da energia dos EUA para a guerra ao terror, muitos projetos para a América Latina foram congelados e outros derrotados, como o projeto da ALCA. Remanesceram os pontos mais sensíveis e de constante preocupação dos EUA, como o bloqueio a Cuba e a presença militar na Colômbia, a "guerra às drogas". Ações antiterroristas pontuais em regiões de presença árabe também surgiram. Um dos grandes impactos do 11 de setembro na América Latina foi no tema das migrações. Com o tema da luta contra o terrorismo, as fronteiras ganham novas guarnições e ampliam-se os mecanismos de vigilância também para além das fronteiras. Amplia-se a tipificação de crimes e delitos relacionados a migrantes e formas arbitrárias de remoção. Embora elaboradas para "caçar terroristas", as novas normas migratórias terminaram voltadas a latinos e indocumentados.
Fórum – A tríplice fronteira Brasil, Argentina e Paraguai, por conta da forte presença árabe, esteve sob vigilância dos EUA por muito tempo. O que se descobriu de fato sobre a possibilidade de existirem braços terroristas por aqui?
Ana Prestes – Desde os anos 60 essa região da Tríplice Fronteira - Argentina, Brasil e Paraguai - principalmente as cidades de Foz do Iguaçu e Ciudad Del Este, são destinos de imigrantes de origem árabe, em sua maioria libaneses. Desde os anos 90 a região ganhou esse nome de Tríplice Fronteira justo na época de ataques à Embaixada de Israel na Argentina em 92 e a uma Associação Israelita (AMIA), também na Argentina, em 1996. Na época, o governo argentino acusou o Hezbollah pelos ataques e alegou que seu abrigo seria na Tríplice Fronteira. Junto a isso construiu-se uma imagem da região como abrigo de criminosos, contrabandistas, local de atividades ilícitas. De modo bastante preconceituoso e caricatural até. Consta nos relatos do pós-11 de setembro que na primeira lista de pontos terroristas como sugestão para serem atacados estava lá relacionada a Tríplice Fronteira. Nos anos seguintes ao 11 de setembro, os relatórios anuais de segurança dos EUA fazem menção à região da Tríplice Fronteira como local de células de apoio a grupos considerados terroristas pelos EUA, como o Hamas e o Hezbollah. Nesses relatórios também apareciam críticas ao Brasil, por considerar o Hezbollah um partido político, e não um grupo terrorista, ou por não ter uma legislação específica antiterrorismo e que permitisse deportação de pessoas. É conhecida também uma atividade do Mossad, a inteligência israelense, na região. No entanto, nunca houve apontamento de evidências ou fatos concretos de que realmente a região seja foco de atividades terroristas.
Fórum – O que mudou na sociedade dos EUA após aquele episódio, internamente falando?
Ana Prestes – Atos terroristas geram medo difuso e generalizado. Esse é o objetivo de quem faz uso desse tipo de recurso. Em síntese, trata-se de elevar o custo interno do inimigo por manter posições desafiadoras aos interesses dos que atacam. Temos inúmeros exemplos pelo mundo. Com a sociedade americana, fundada com base na proteção contra inimigos externos e de uma autojulgada predestinação a nação dominante, isso se acentua ainda mais. Cresceram fenômenos internos como a islamofobia, com ataques a pessoas muçulmanas e árabes de forma generalizada, que passaram a ser agredidas, desempregadas, marginalizadas. De modo geral, aumentou o segregacionismo, a marginalização da população mais vulnerável, imigrantes em geral. O governo Bush também usou o pretexto do 11 de setembro para controlar mais as atividades das pessoas, fazer detenções arbitrárias de americanos e estrangeiros de forma indiscriminada. Através do Ato Patriótico, um conjunto de leis aprovadas logo após os ataques, uma série de novos dispositivos jurídicos de segurança passaram a impactar a cidadania dos EUA e estrangeiros residentes.