Alvo de uma junta internacional de especialistas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelos massacres realizados na Bolívia desde o golpe que a levou à presidência do país, a ex-senadora Jeanine Áñez virou também foco do Ministério Público do país em razão da gestão desastrosa no enfrentamento à pandemia de Covid-19.
Na última segunda-feira (22), a Procuradoria Geral do Estado intimou Áñez a prestar depoimento dentro de uma denuncia sobre “desobediência às resoluções em ações de defesa e de inconstitucionalidade”, que, na prática, investiga possível omissão da governante no trato da pandemia.
A intimação ocorreu após a ex-ditadora não se apresentar para prestar depoimento. Caso ela não comparecesse novamente, a denúncia apontava que "se liberará correspondente mandado de prisão". Áñez, então, disse que estaria sendo perseguida, o que fortaleceu a possibilidade de uma detenção pela omissão na pandemia.
Na terça-feira (23), ela compareceu ao Ministério Público, mas se manteve em silêncio.
Áñez é candidata nas eleições regionais ao governo de Beni. Ela aparece na segunda colocação.
Em entrevista ao El Deber, o ministro da Justiça, Iván Lima, desmentiu a tese de que seria uma perseguição do governo contra ela e destacou que a ação está sendo "promovida por ilustres constitucionalistas, que nada têm a ver com o MAS, e que pediram à presidente Añez, quando ela estava no cargo, que fornecesse suprimentos aos médicos e ao sistema hospitalar de Chuquisaca e ela não o fez". A Fórum entrou em contato com Lima para saber a opinião do ministro sobre a ação, mas não obteve retorno.
Para compreender melhor a situação, a Fórum decidiu ouvir dois pesquisadores que acompanham a situação da Bolívia para comentar sobre como o governo de fato de Áñez geriu o país diante da pandemia e se a prisão é justa. O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), ex-ministro da Saúde, ainda comentou à reportagem sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro no Brasil, fazendo um paralelo com as investigações da PGR brasileira com as da PGE boliviana.
"É consenso que a administração da Áñez com relação ao combate à pandemia foi um desastre completo", apontou a cientista política Marília Closs, coordenadora-executiva do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (Netsal), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj. A pesquisadora destacou a grave crise econômica que atingiu o país andino e as políticas insuficientes para atender as demandas da população diante da pandemia.
Para o economista Fabio Castro, doutorando em Economia Política Mundial pela UFABC e pesquisador do Instituto Brasileiro de Estudos Contemporêneos (IBEC), "a atuação de Añéz no combate a pandemia foi marcado pela busca do governo, que chegou ao poder através de um golpe de estado, de se perpetuar no poder". No entanto, ele enxerga que a ex-presidenta possa ser punida.
"É muito difícil punir um presidente por sua conduta no combate a pandemia nas vias legais. A chave da 'gestão' da pandemia no governo Anéz foi seu uso político para perpetuação do governo golpista e o fundamento material que justifica um processo judicial é o superfaturamento na aquisição de equipamento de combate ao Covid-19", afirmou Castro.
"As possibilidade de prisão da Senhora Añéz eu entendo serem praticamente nulas", sustentou. "Isso não é porque ela não é culpada, nem porque é justo. A questão é que, como nós sabemos, em nossos países de herança colonial não superada, os processos judiciais são bastante tendenciosos, o âmbito jurídico dos países está muito concentrado na mão das velhas oligarquias, o que dificulta qualquer tipo de processo contra representantes desses grupos, que é caso da Añéz. Avanços pontuais como este que está acontecendo, entram mais na disputa política do que no avanço da justiça", completou.
Castro ainda defendeu que é preciso entender que o papel do governo Añéz com relação a pandemia "é que muito além da omissão, está o uso político da pandemia para se perpetuar no poder. E aí, dentro disso, ocorreram os escândalos de desvio de dinheiro, de superfaturamento com relação a aquisição de respiradores e etc., que são elementos que ampliam a possibilidade de um julgamento".
Essa visão é compartilhada por Closs, que aponta para uma "gestão da pandemia atravessada por escândalos de corrupção".
"O principal escândalo teve como consequência a demissão do ministro da Saúde, Marcelo Navarras, por um caso de superfaturamento de respiradores. Aproveitou-se da pandemia não só para a manutenção deste governo no poder, tendo em vista que as eleições foram adiadas mais de uma vez por causa da pandemia, mas utilizou-se muito de um momento de calamidade para casos de corrupção", disse.
Áñez e Bolsonaro
Os dois pesquisadores também convergem que, por esses e outros fatores, é difícil fazer uma comparação da gestão Áñez com a gestão de Jair Bolsonaro no Brasil.
Castro entende que "ambos os governos, dentro de sua particularidade usaram a conduta frente à pandemia para tentar fortalecer seus interesses", mas o ponto de partida dos dois é distante.
"O Governo Bolsonaro, por mais destruidor que seja, foi eleito através de uma eleição democrática (apesar dos processos judiciais e artimanhas políticas que facilitaram este resultado), com essa mesma agenda de destruição nacional na pauta. Portanto, por mais terrível que seja, ele tem, em alguma medida, legitimidade. O governo Añéz, por sua vez, ascendeu ao poder através de um golpe militar extremamente violento e os golpistas colocaram Añéz na presidência numa espécie de assalto ao poder", pontuou.
Já Closs traz um debate sobre o autoritarismo e a reação de setores populares às medidas do governo para afastar a comparação entre os dois governos. "Esse elemento é mais complexo, o que, em alguma medida, prejudica a comparação com o Bolsonaro. Frente à existência de um governo que causava muita desconfiança, forças progressistas colocaram em xeque a existência de uma própria pandemia como um todo. No começo da pandemia, quando se decretou lockdown, o governo fez isso com muita violência, principalmente em departamentos onde o MAS tem maioria", destacou.
"O próprio decreto de lockdown foi muito atravessado por autoritarismo, já previa o uso das Forças Armadas. Isso fez com que setores populares reagissem, principalmente com o discurso de 'vão nos matar de fome'... Em alguma media iam matar de fome mesmo... A ausência de um auxílio emergencial gerou a volta da fome", disse.
Investigações contra Bolsonaro
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, estão sendo investigados pela Procuradoria Geral da República (PGR) por conta do colapso do sistema de Saúde de Manaus, que conviveu com a falta de oxigênio. Além disso, diversos pedidos de impeachment foram apresentados por partidos de oposição e entidades de saúde.
A Fórum ouviu o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), ex-ministro da Saúde, sobre essa possibilidade. De início, o parlamentar comemorou a reviravolta na Bolívia: "A terra é redonda, o mundo dá voltas. Na Bolívia, após uma eleição democrática que resgatou o governo popular, as atitudes criminosas da ex-presidenta golpista e seus ministros estão sendo punidas, de forma correta".
"Eu torço, espero, e tenho certeza que este será o futuro de Bolsonaro. Ou no Brasil ou nos tribunais internacionais, eu tenho certeza que Bolsonaro será julgado e punido pela sua omissão diante da pandemia, pelas irregularidades de seu governo pela aquisição de testes, pelas irregularidades do ministro-general investindo dinheiro público em um medicamento que não tem qualquer eficácia, por desorganizar a vacinação", afirmou.
"Bolsonaro e Pazuello ainda serão julgados e punidos pelos crimes cometidos durante a pandemia", finalizou.