As ruas de Caracas estão esvaziadas. Os supermercados e farmácias atendem um número limitado de pessoas por vez. As filas são feitas com distanciamento. Os restaurantes estão abertos, mas a comida é para levar. O metrô funciona apenas para os trabalhadores dos setores essenciais e a fiscalização é rigorosa. O uso de máscara é obrigatório e nas ruas cerca de 90% dos venezuelanos cumprem essa norma.
Esse é o cenário na Venezuela desde o dia 16 de março, quando o país entrou em quarentena. Essa semana as medidas estão ainda mais rigorosas que nas três semanas anteriores. Isso porque o governo decretou quarentena rigorosa, depois que os casos de coronavírus começaram a subir. Nos últimos oito dias passaram de 5.832 para 8.065. As mortes subiram de 50 para 75.
Segundo avaliação do governo venezuelano o número é alto, já que o país passou a apresentar em média 300 novos casos por dia. Nos meses anteriores esse número estava abaixo de 100. No entanto, a Venezuela continua apresentando índice de contágio bem abaixo de seus países vizinhos: Brasil e Colômbia.
Os números apresentados pelo governo venezuelano foram questionados por políticos da oposição, que afirmam que o presidente Nicolás Maduro está escondendo dados. Porém, a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana da Saúde e Universidade Johns Hopkins (Maryland, EUA) validaram as estatísticas venezuelanas e afirmam que não há motivos para questioná-las. Os kits dos testes de covid-19 utilizados não são descartados depois de aplicados nos pacientes, pois esse material é enviado á OMS. Dessa forma o organismo também mantém o controle sobre as estatísticas.
Mas, o que fez a Venezuela de diferente para apresentar esse número reduzido de casos covid? Qual é o segredo desse país? Segundo especialistas, o fato de decretar quarentena logo no início na crise e adotar o uso obrigatório de máscaras foram medidas que tiveram impacto significativo no controle do contágio.
A primeira medida tomada contra o covid-19 foi no dia 15 de março, dois dias depois de detectar o primeiro caso: o governo decretou estado de emergência e quarentena em sete estados. Dois dias depois determinou quarentena nacional, sendo o primeiro país da América Latina a adotar essa estratégia de prevenção.
Além disso, é importante destacar que a Venezuela adotou o modelo chinês prevenção. Uma delegação de cientistas e médicos da China visitou a Venezuela em abril para prestar assistência técnica ao governo e ajudar a minimizar a cadeia de contágio do covid-19. O governo chinês também enviou insumos médicos, respiradores e mais de 2 milhões de testes rápidos.
Os cientistas chineses alertaram os venezuelanos sobre os erros que foram cometidos na China, para corrigi-los a tempo na Venezuela, como, por exemplo, o uso de material de proteção adequado para as equipes médicas. “Antes de entender que se trata de um vírus altamente contagioso não utilizamos todos os equipamentos adequados para proteger nossos profissionais da saúde e muitos ficaram doentes. Isso é como ir a uma guerra e ter seus melhores soldados neutralizados logo no início”, revelou um dos médicos da delegação chinesa, em evento público com o presidente Nicolás Maduro.
O sistema venezuelano de saúde foi aperfeiçoado para atender a pandemia. Além disso, a Venezuela possui um convênio com o governo de Cuba, pelo qual atuam cerca de 20 mil médicos cubanos em comunidades pobres do país. Um verdadeiro batalhão de médicos, enfermeiros e líderes comunitários subiram morros e favelas, visitando casa por casa para dar atendimento primário e detectar casos suspeitos de covid-19. Literalmente foram à caça do vírus.
Esses mesmos médicos atendem a pacientes de outras doenças em suas casas, dessa forma evitam que pessoas com a saúde debilitada procurem os centros de saúde e corram o risco de serem contagiadas com o covid-19, o que poderia converter em um caso grave da doença.
O modelo chinês foi aplicado igualmente nas estruturas de organização comunitária. Tanto que na China foram os militantes dos partidos governistas que deram assistência massiva à comunidade. Para que todos os cidadãos pudessem ficar em casa e a rigorosidade do distanciamento social fosse mantida, os militantes do Partido Comunista da China (PCCH) foram quem garantiram a entrega de alimentos de casa em casa, entre outros tipos de assistência. Isso é o que afirma o segundo vice-ministro do Departamento Internacional do PCCH, Li Jun. “Certa de 40% dos mortos por covid-19 na China eram militantes do PCCH. Eram as pessoas mais expostas”, ressaltou Li Jun em recente videoconferência com o vice-presidente do Partido Socialista Unidos da Venezuela (PSUV), Diosdado Cabello.
Na Venezuela não é diferente. São os militantes do PSUV que estão no front de batalha contra do covid-19. O partido colocou sua maquinaria política, eleitoral e organizativa a serviço da prevenção sanitária. Os carros de som utilizados em marchas foram entregues ao Ministério de Saúde para circularem com mensagens da campanha contra o vírus. Todas as estruturas de base e seus líderes nas comunidades agora atuam em função da prevenção da saúde pública.
A diretora de Comunicação do PSUV, a deputada Tánia Díaz, explica como essa mudança ocorreu. “O PSUV sempre foi uma poderosa máquina eleitoral, mas precisava converter-se também em uma poderosa organização social, que trabalhasse para a sociedade. Dessa forma foi se adaptando às necessidades conforme nós fomos sofrendo ataques na nossa economia”.
Atualmente o PSUV possui 7, 8 milhões de militantes, o que representa 26% da população da Venezuela, um país de 30 milhões de habitantes. Um dos maiores partidos políticos do mundo, junto com PCCH, com 92 milhões de filiados. Suas estruturas de base são os diretórios nacional e estaduais (24 unidades), Unidades de Batalha Bolívar Chávez (UBCH) (14.381), líderes de comunidade (48.376) e líderes de rua (279.460). “Estrutura conforma maior exército da paz da Venezuela”, afirma Cabello.
Como frear o covid?
Na Venezuela, a primeira barreira de contenção dos contágios foi a ação de tirar as pessoas de circulação, mas para isso era preciso garantir uma série de condições sociais. Cerca de um terço da população venezuelana está cadastrada em programas sociais do governo nacional. Entre os benefícios está uma cesta básica subsidiada, que é entregue uma vez por mês e, em alguns lugares, a cada 20 dias, através dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), organizados através conselhos comunais, principais organizações de base da Venezuela.
A dona de casa Janet Melian, de 49 anos, é uma das líderes de rua do bairro de Petare, a maior favela de Caracas, localizada na zona leste da cidade. Melian conta como a organização comunitária influenciou diretamente na prevenção. “O fato de estarmos organizados na comunidade ajuda porque garantimos que as pessoas recebam em suas casas coisas como o gás de cozinha, uma cesta básica, uma cesta de proteína, que esse mês foi sardinha fresca”, diz dona de casa.
Dentro da estrutura do PSUV as líderes de rua como Melian também reportam a situação social e as necessidades básicas das famílias em sua rua. Essa informação é repassada às comunas, junto à líder comunitária, para cobrar ação do poder público. Também estão atentas aos possíveis casos de covid em suas comunidades e, quando há suspeitas, chamam as Brigadas de Prevenção, que mandam uma equipe médica para a casa do paciente para examinar e fazer o teste rápido. A Venezuela já realizou cerca de 1,3 milhão de testes desde o início da pandemia. Isso representa uma média de 36 mil exames por milhão de habitantes, um dos índices mais altos do continente.
Ademais, em Petare os moradores estão atentos até mesmo aos menores sinais de possível presença do coronavírus, conta a líder comunitária do Clap, Alix Ortiz, 61 anos. “Essa semana, ficamos sabendo de um caso de uma senhora que veio da Colômbia, mas que entrou por caminhos ilegais da fronteira e não passou pelos controles sanitários. E ela se recusa ir ao centro de saúde fazer o teste de covid”, conta a líder. Diante dessa situação a comunidade acionou as Brigadas de Prevenção e “proibiu” a vizinha de sair de casa, para não colocar em risco a comunidade.
A maior parte dos contágios registrados na Venezuela tem como origem os imigrantes venezuelanos que estão regressando ao país, cerca de 60% dos casos. Em quatro meses mais de 50 mil venezuelanos entraram ao país pelas fronteiras terrestres da Colômbia e do Brasil, segundo dados oficiais. Foi estabelecido um corredor humanitário entre esses países, justamente para permitir a entrada dos cidadãos, já que todas essas fronteiras estão fechadas devido à pandemia.
Os protocolos de segurança nas fronteiras incluem o teste rápido de covid-19 e quarentena obrigatória por 15 dias em acampamentos de emergência equipados para isso. No entanto, o governo tem detectado ações criminosas de grupos paramilitares e narcotraficantes colombianos que oferecem rotas clandestinas pela fronteira, justamente para aqueles que não querem cumprir a quarentena.
Essas pessoas que não cumprem os protocolos são identificadas pelas comunidades logo que chegam e precisam mostrar seu teste de covid-19. A líder Alex Ortiz conta como identificam esses casos. “Estamos atentos, porque conhecemos cada pessoa que mora no bairro, porque temos líderes em todas as ruas. Sabíamos que essa pessoa estava na Colômbia. Depois o filho dela veio falar com a gente, para confirmar que ela tinha chegado recentemente. Perguntamos pelos exames que teria que ter feito na fronteira e tentaram esconder que ela tinha entrado de forma ilegal e sem seguir os protocolos de saúde”.
No outro extremo de Caracas, na periferia da zona oeste, fica o bairro El Algodonal, onde está um dos principais hospitais públicos do país, equipado pelo governo para atender pacientes graves de covid-19. Antes mesmo da pandemia esse já era um hospital referência em tratamentos de doenças respiratórias. Por isso a administração do hospital criou um programa de atendimento às comunidades pobres dessa região, em parceria com as comunas locais e demais organizações de base.
Uma comissão de líderes comunitários e de ruas, junto com trabalhadores do setor de Serviço Social do hospital, visitam pacientes frequentes e pessoas doentes identificadas pelas líderes. O coordenador de Serviço Social do Hospital El Algodonal, José Ibarra, faz parte dessa equipe. “Temos população quase em pânico, com medo do vírus. Por isso trabalhamos até mesmo com terapia familiar. Visitamos as casas e identificamos casos suspeitos de covid-19 damos as orientações para que possam ter acesso ao atendimento e fazerem o teste. Mas também atendemos outras doenças”, destaca.
E o trabalho vai além da questão da saúde. “Muitas vezes o que está causando certas doenças são as condições sociais do paciente. Esses são os casos sociais, como chamamos, aqui, os casos em que a pessoa precisa de assistência social. Quando isso acontece, nós buscamos canalizar o caso com outros órgãos do Estado que prestam esse tipo de atendimento”, explica José Ibarra.
Esse era o caso do senhor Jesus Rosales, paciente de 88 anos, portador de diabetes, aposentado, viúvo, e que passa o dia todo sozinho, enquanto o filho, de 58 anos, está no trabalho. Sua casa apresenta insalubridade, como vazamento de água no interior de vários cômodos, excesso de umidade, higiene comprometida e alimentos inadequados às condições de saúde do paciente.
A partir de agora as líderes comunitárias são os responsáveis por cobrar, fiscalizar e garantir o atendimento solicitado pelo funcionário do hospital aos órgãos de assistência social. O caso será monitorado de perto.
Dessa forma a Venezuela vai construindo uma rede solidariedade entre vizinhos de rua, de bairros e da cidade. Uma estrutura criada para combater inimigos que vinham de fora, devido aos ataques à sua economia e o bloqueio internacional, agora é usada para combater esse inimigo invisível que paralisou o mundo.