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Por Beatriz Leandro*
A Tapera Taperá sediou este mês em São Paulo debate com Florence Poznanski (França Insubmissa) e Daniela Mussi (Universidade Emancipa) sobre os coletes amarelos na França e junho de 2013 no Brasil.
O colete amarelo é peça obrigatória em todo carro francês para ser usado em caso de acidentes. O movimento dos coletes amarelos se apropriou deste item de segurança para protestar contra o aumento dos combustíveis fósseis em novembro de 2018. O presidente Emmanuel Macron justificou a alta como parte de programa para promover alternativas menos poluentes. Contudo, o movimento ambientalista também tomou o lado dos “gilets jaunes”, alegando que a luta ecológica é complementar e não oposta à social: “Fim do mundo/ fim do mês/ mesma luta”.
Os estudantes também se juntaram aos protestos - 2.600 alunos e professores entoavam “Quem não pula é Macronista!” para se opor à reforma estudantil e ao alto custo de vida. Uma bandeira comum dos manifestantes era o fim do ISF (Imposto sobre as maiores fortunas do país) revogado por Macron. 280 mil pessoas participaram dos atos naquele mês.
Para Florence Poznanski, o movimento guarda semelhança a Maio de 68. Há 51 anos, 9 milhões de pessoas, alavancadas por estudantes e trabalhadores, tomaram as ruas e os muros com slogans irreverentes: "Corra camarada, o velho-mundo está atrás de você". "Por causa da indiferença geral, o amanhã está cancelado” ou ainda “A sociedade é uma flor carnívora”.
Para os filósofos Deleuze e Guattari, maio de 68 foi da ordem de um acontecimento puro, livre de qualquer normativa - uma “sucessão de instabilidades e de flutuações amplificadas”. Mas lamentaram também a “impotência radical” da sociedade francesa frente à irrupção cidadã. “Tudo o que era novo foi marginalizado ou caricaturado” disseram eles. O movimento terminou e o partido governista de De Gaulle ganhou as eleições.
As jornadas de 2013 no Brasil também foram capturadas pelo “aparelho de Estado”. Na filosofia deleuziana, este seria, grosso modo, as forças tradicionais dominantes: o status quo, o estado repressivo e militar, a rede discursiva e institucional. De fato, 2013 acabou por reorganizar os grupos de direita e extrema direita, desembocando no impeachment da primeira presidenta eleita, em 2016, e na eleição de Bolsonaro em 2018.
Os coletes foram apoiados por ambos polos políticos no início. Desde a extrema esquerda de Luc Melénchon (França Insubmissa) até a extrema-direita de Marine Le Pen (Frente Nacional) e do italiano Matteo Salvini (Liga Norte). Hoje, no entanto, os coletes parecem ter transcendido as cores políticas. Florence Poznanski considera que eles não se sentem representados e recusam, portanto, toda forma de partido. Para ela, de todas formas, o movimento já entrou para a história. “Há um AC (antes dos coletes) e um DC (depois dos coletes). É importante para os partidos de esquerda entenderem o movimento como demanda social e para a classe política em geral sair da lógica eleitoral e olhar para a base”, afirmou.
Perspectivas
Após seis meses dos primeiros protestos, o movimento não tem o mesmo fôlego nas ruas. Foram 18 mil no último ato em maio de 2019 (45 mil segundos os organizadores). A polícia tem sido acusada de “extrema violência” contra os manifestantes.
Cerca de 200 coletes amarelos que perderam a visão ou membros (um jovem teve a mão decepada) protestaram na “Marcha dos Mutilados” este mês. Eles alegam que a mídia francesa tem dois pesos e duas medidas : condena a violência policial contra os manifestantes de Hong Kong (mais de 1 milhão de pessoas saíram às ruas contra projeto - suspenso hoje - que permitia extradição de nacionais à China) e minimiza a brutalidade policial contra eles.
"O movimento permanece impalpável, inclassificável, misterioso até", analisa Christian Delporte, historiador da Universidade de Versalhes, em entrevista à France 24. Ainda que permaneça sem uma definição, Florence destaca três características importantes: é um movimento de classe, é espontâneo (basta vestir um colete amarelo para ser um) e permeável (é atravessado por partidos e ativistas sem ser capturado por ninguém).
O que aparenta, hoje, para ela, é que os corpos políticos intermediários - partidos, sindicatos, movimentos sociais - saíram enfraquecidos desta irrupção cidadã. Florence avalia que “vai demorar para os coletes amarelos se tornarem uma força política real” - se é que se tornarão um dia.
Qual será o porvir do movimento? Em abril houve a “Assembleia Geral das Assembleias Gerais” em Saint-Nazaire, com 800 participantes representando cerca de 250 delegações de toda a França. "Não é porque há menos pessoas nas ruas que o movimento está perdendo a força", avalia Céline, uma das organizadoras em entrevista ao jornal Basta!. “Pelo contrário, continua estruturado e com novas formas de ação. Nós escolhemos inventar uma democracia real, e isso leva tempo e energia” afirmou.
Para Deleuze, há que desmoronar todo pensamento para dar luz a algo novo. Há que tirar o pensamento “fora do eixo” para desestabilizar e inventar um novo modo de ver, criar e sentir. Ao mesmo tempo, as linhas de força de captura - o “aparelho do Estado” - percorrem todos os fluxos, mesmos os minoritários, podendo paralisá-los. Estariam os coletes amarelos abrindo uma fenda criativa no sistema político burocratizado, institucionalizado, arcaico? Ou seriam uma onda desestabilizadora do sistema mas que, como toda onda, deve terminar para que outros fluxos atravessem e se criem? É possível acreditar que esse movimento, se estruturado, poderá continuar desestabilizando ou serão “capturados” pela política institucional? Por ora, os coletes amarelos atualizam e corporificam outro muro de 68: “A política está nas ruas e não nas urnas”.
*Beatriz Leandro é bacharel em Relações Internacionais (PUC-SP). Mestre em Direito Internacional Humanitário pela Universidade Internacional de Andalucía (Espanha)