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Por Euan Gibb*, com tradução de Vinicius Sartorato**
O Chile era considerado o exemplo mais claro da estabilidade possível na América do Sul quando políticas neoliberais são adotadas como princípios religiosos. Agora, o país está em uma situação de rebelião aberta. Essa revolta explodiu exatamente como consequência das mesmas políticas.
O governo do presidente Piñera liderou uma brutal e violenta repressão que culminou em pelo menos 18 mortes. Mais de 5000 pessoas foram detidas ou presas. Existem centenas de vídeos - literalmente - de ações militares e policiais assustadoramente cruéis contra a população que circulam nas mídias sociais. As táticas desesperadas do estado de emergência, dos toques de recolher, repressão, da difamação pública de manifestantes como criminosos e violência desmedida estão trazendo mais pessoas às ruas todos os dias. A escalada da repressão faz com que as ruas se encham com mais de energia no dia seguinte. E essa energia já é incrível.
Na terça-feira (22) mais de 20 portos foram fechados por trabalhadores portuários. Ontem (23) e hoje (24), os sindicatos de todo o país organizam ativamente uma greve geral.
Como tudo isso poderia ser uma resposta a um aumento de 30 pesos (17 centavos de reais) na tarifa do transporte público? Claro que não é. O transporte é caro. Para um trabalhador que recebe um salário mínimo em Santiago, o custo chega até 15% de seu salário se pegar um ônibus ou metrô duas vezes por dia. Em um país onde mais da metade da população ganha menos que um salário mínimo. Mas, é claro que qualquer rebelião dessa profundidade e escala requer muito mais combustível.
O Chile tem sido o mais fiel adepto das políticas neoliberais da Escola de Chicago desde a ditadura militar dos anos 70. Há um legado vasto, real e substantivo desta época que alimenta a rebelião atual. Os "milagres da privatização" de Thatcher e Reagan foram modelados nas experiências chilenas iniciadas nos tempos de Pinochet.
Quase tudo que foi público foi privatizado totalmente ou parcialmente. Semelhante aos EUA e a muitos países da América Latina, existe um sistema de saúde pública ativamente minado, fraco e fragmentado no Chile. Alguns podem pagar uma proporção significativa de sua renda por planos de saúde privados, a fim de não ser um dos milhares que morrem todos os anos à espera de tratamento médico. Os alunos têm que pagar taxas de matrícula altas para estudar nas universidades e se formam com uma dívida que leva em geral mais de uma década para que os graduados e suas famílias paguem.
O sistema de pensões e aposentadorias é completamente privatizado. Esforços políticos são feitos para replicar o modelo ao redor da América Latina. Os economistas apresentam este modelo de capitalização individual com "administradores de fundos de pensão" (AFP) como um grande sucesso na região. Este sistema foi implementado durante a ditadura. É administrado por empresas privadas que "emprestam" dinheiro do fundo de pensão dos trabalhadores para si mesmo! Essas empresas podem obter ganhos por si mesmas e repassar prejuízos aos trabalhadores. O sistema deixa os trabalhadores aposentados na miséria. Sindicatos e outros grupos vêm realizando campanhas para mudar este sistema há anos. Piñera tem propostas atualmente em andamento no Senado para dar ainda mais recursos a essas empresas.
Os moradores de Santiago pagam algumas das mais altas contas de água do continente e enfrentam escassez crônica. O sistema de água foi completamente privatizado sob Pinochet. Exatamente o modelo promovido pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Hoje, três quartos dos chilenos apoiam o retorno da propriedade pública da água.
A constituição nacional e o regime de direitos trabalhistas no Chile também foram criados durante a ditadura militar. Muitos sindicatos são fracos e fragmentados por lei e possuem baixo poder de negociação. As horas de trabalho são longas, as férias são poucas e a exploração é intensa. O único país com maiores níveis de desigualdade na região é o Brasil (o Chile concorre com a Colômbia pelo segundo lugar). Exatamente o país onde o atual presidente - Bolsonaro - está tentando replicar as políticas chilenas.
Embora os Mapuche (o principal grupo de povos indígenas do Chile) nunca tenham cedido formalmente ao Estado colonial, a violência sistemática dirigida a esses povos tem sido implacável há séculos e seus efeitos foram exatamente os planejados. A violência estatal e privada contra os povos indígenas continua hoje em um contexto semelhante ao Brasil, onde muitos povos indígenas são caluniados como obstáculos inconvenientes para exploração das riquezas dos “recursos naturais”.
Portanto, as respostas imediatas de alguns organizadores inteligentes, jovens e estratégicos ao aumento da tarifa de transporte público foram organizar uma campanha de 'pular as catracas'. A campanha decolou imediatamente. A reação do governo foi militarizar as estações de metrô e reprimir violentamente o movimento. Quando isso não funcionou, a polícia fechou as estações nos horários de pico. Trabalhadores que estavam voltando para casa foram impedidos de entrar no metrô e foram participar das crescentes manifestações.
A polícia de Santiago perdeu completamente o controle no final da semana passada, quando 16 estações de metrô e a sede da multinacional italiana Enel foram incendiadas. Vários outros edifícios públicos, privados (incluindo o Walmart) e muitos veículos foram incendiados. O exército foi mobilizado e um estado de emergência declarado. O toque de recolher foi chamado. Isso foi entendido como ultrajante, porque o legado da ditadura militar nunca foi seriamente tratado no Chile.
Enquanto Piñera dava ordens para intensificar a repressão nas ruas, o Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile relatou uma série de abusos e violações graves pelas forças de segurança em todo o país. “Há relatos de uso excessivo da força no momento da detenção, assédio injusto a crianças, maus-tratos, socos no rosto, nas pernas, tortura, violações sexuais de mulheres, entre outras violações”. A resposta do presidente foi de declarar abertamente que o Chile "está em guerra", mais uma vez inflamando a população. Quase imediatamente, um alto general declarou publicamente que não estava em guerra com ninguém.
Os toques de recolher foram abertamente desafiados, já que milhares de manifestações descentralizadas estavam acontecendo em bairros de classe trabalhadora e até de classe média em todas as grandes cidades. Manifestações dessa revolta agora estão sendo expressas em todas as regiões do país, tanto nas cidades quanto nas áreas rurais. Os partidos políticos tradicionais e a velha esquerda socialista no Chile têm sidos completamente incapazes de orientar ou influenciar qualquer tipo de liderança aos movimentos.
Piñera fez uma série de ofertas e concessões crescentes desde segunda-feira (21). Anunciando primeiro a revogação do aumento da tarifa; logo, ofereceu um aumento de 20% nas aposentadorias; e pra incluiu alguns tratamentos médicos caros no sistema público. Medidas sem nenhum efeito absoluto.
As manifestações e a mobilização para greve geral continuam a crescer. A única resposta efetiva do Estado tem sido a repressão, com quase 10.000 soldados nas ruas das cidades do norte ao sul do país. O Instituto Nacional de Direitos Humanos está agora investigando um centro de tortura temporária que os militares construíram em uma estação de metrô fechada. Parece que a ditadura no Chile nunca desapareceu. Mas também é verdade que a resistência também nunca sumiu. A raiva popular está se consolidando naquela coragem e confiança que levam à afirmação de que a ação coletiva funciona, mesmo nos momentos políticos mais repressivos. O mito de que políticas neoliberais bem implementadas trarão estabilidade e crescimento econômico está morto. ¡Adelante!
*Euan Gibb é assistente regional no Sindicato Global dos Serviços Públicos (ISP). Canadense, graduado em Estudos de Trabalho pela Universidade McMaster (Canadá), é mestre em Políticas de Trabalho e Globalização pela Universidade de Kassel (Alemanha)
**Vinicius Sartorato (@vinisartorato) é jornalista e sociólogo. Mestre em Políticas de Trabalho e Globalização pela Universidade de Kassel (Alemanha)