Analistas políticos e o próprio Andrés Manuel López Obrador, presidente eleito do México que venceu o pleito no último domingo (1º), consideram sua vitória como o mais importante episódio político e social no país desde a Revolução Mexicana (1910). A comparação se dá pelo fato de que, tal como a revolução derrubou um governo ditatorial de décadas, a eleição de AMLO - como é conhecido o futuro chefe de Estado mexicano – quebrou uma hegemonia de direita e centro-direita que vigorou no país da América do Norte por mais de 70 anos.
O Partido Revolucionário Institucional (PRI), que surgiu em 1929, logo após a revolução, governou o México de maneira quase ditatorial até o ano de 2000 quando, pela primeira vez, um outro partido assumiu o governo federal: o Partido da Ação Nacional (PAN), sob a liderança de Vicente Fox. De lá para cá, PAN e PRI se revezaram no poder e pouca coisa mudou. Ou seja, de 1930 a 2018 apenas duas legendas, de cunho político parecido, detinham o poder no México. Antes disso, o país era governado pela ditadura do general Porfírio Díaz. Em resumo, o México elegeu um candidato do campo progressista e à esquerda pela primeira vez em sua história.
“Certamente esta eleição demonstra um episódio importante, principalmente uma transformação na percepção popular, mas saberemos o impacto de fato conforme se encaminhe o governo em si. Só então poderemos julgar se Obrador será capaz de fazer mudanças estruturais no México e qual o limite das alianças firmadas com grupos de outros campos políticos. A eleição de uma liderança de esquerda é nova no México, mas não é tão necessariamente contramão para a região como apontam alguns analistas. Lembremos que a última eleição no Brasil elegeu um partido de centro-esquerda. O crescimento dos partidos de oposição no congresso nos anos 1990 e a primeira derrota do PRI em 2000 são eventos também importantes que impuseram mudanças ao sistema político mexicano. Obrador não é um novato, e é parte dessas diversas mudanças”, analisou, em entrevista à Fórum, o professor Tomaz Paoliello, do departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
De acordo com Paoliello, a “maleabilidade” ideológica do PRI, aliada à “lógica do coronelismo e violência e repressão política” foram fatores importantes para que o mesmo grupo político se mantivesse, por tanto tempo, no poder.
Fórum conversou ainda com um jornalista e um fotojornalista mexicano - Héctor Alfaro* e Carlos Ogaz* - sobre o cenário político e as mudanças que a eleição de Obrador podem trazer ao país. O sentimento, no geral, é de esperança de um novo direcionamento político, mas o passado os faz ficarem atentos.
Confira, por tópicos, o que eles disseram.
Vitória de Obrador: tão importante quanto a Revolução Mexicana?
Héctor Alfaro, jornalista mexicano: “A importância desta eleição está em ser a primeira oportunidade para um projeto de nação unido à esquerda, baseado em uma ideia mais socialista que neoliberal como nos últimos 20 anos. Depois de 70 anos governados por um partido que fez o que queria, 12 por outro que não soube fazer maiores conquistas e outros 6 pelo mesmo PRI, esse resultado é histórico por causa das expectativas que gera na população mexicana. Além disso, esta é a terceira vez que Andrés Manuel López Obrador participa da eleição como candidato à presidência. Alguns o colocam como doente de poder, mas alguns outros, a maioria, o consideram uma esperança real. Isso se soma à boa recepção que percebi no cenário internacional, tanto na América Latina quanto na América do Norte. Por estas razões, essa pode, sim, ser considerada uma conquista democrática da era moderna da política mexicana”. [caption id="attachment_136144" align="alignright" width="282"] O fotojornalista mexicano Carlos Ogaz (Arquivo Pessoal)[/caption]
Carlos Ogaz, fotojornalista mexicano: “Eu acredito que há esperanças de mudança. No México existe uma guerra que já tem 11 anos supostamente contra o narcotráfico, que já vitimou mais de 100 mil pessoas e deixou 30 mil desaparecidos. Alguns dizem que são mais de 200 mil assassinatos de 40 mil desaparecidos, e mais de 200 mil deslocados. Há uma alta taxa de violência, de sequestros, extorsões. Os governos que desapropriaram o povo mexicano venderam as terras e entregaram-nas às transnacionais da indústria da mineração e criaram pontos de exploração econômica do sul ao norte do país. E isso não se refletiu a níveis econômicos para as pessoas. Ex-presidentes como o [Felipe] Calderón violaram as conquistas sociais dos trabalhadores da educação, privatizaram pouco a pouco a segurança e também a saúde. Foi se criando uma atmosfera de segurança militar. Este cenário de privatização, do aumento dos preços da cesta básica, de aumento dos preços da gasolina reduziu, sem dúvidas, o poder de compra. Os bolsos estão vazios. E Andrés Manuel López Obrador, desde 2006, concorre à presidência com um discurso populista, de colocar em primeiro lugar o bem-estar social dos mais pobres. É por isso que digo que há esperanças do povo mexicano de que AMLO concretize essas mudanças. Com maioria no Congresso, digamos que agora é politicamente possível dizer que existem as condições para a realização de uma reforma política efetiva que devolva um pouco do tanto que os governos do PRI e do PAN tomaram do povo. Não acredito que esta eleição ou a chegada de Obrador à presidência do México seja o episódio político mais importante desde a Revolução Mexicana, mas acredito que essa afirmação também tem a ver com esse espírito de esperança e felicidade que significa tirar o PRI e o PAN do governo federal, de muitos governos estaduais e de diferentes cidades do país. Então, eu acredito que o tempo dirá se vão se cumprir as promessas de campanha. Esse discurso de campanha, inclusive, vem decrescendo desde 2006, foi diminuindo gradativamente. Então temos que ficar atentos em como a situação política e social do nosso país se desenvolve com este governo e, a partir daí, acho que podemos ter essa avaliação para dizer se este é ou não um dos eventos mais importantes desde a Revolução Mexicana. Por enquanto, há a esperança de mudança”.
Hegemonia do PRI e alternância com o PAN
Héctor Alfaro, jornalista mexicano: “Como o PRI manteve a maioria na Câmara dos Deputados e Senadores, o Partido da Ação Nacional (PAN) carecia do poder de decisão. O projeto de Vicente Fox foi diluído em freios colocados a partir do Congresso daqueles anos, que impediu, inclusive, viagens ao exterior, algo que evitou as relações com países de grande importância, o que diminuiu a estabilidade econômica do país. Com Felipe Calderón as coisas não mudaram muito. O problema central dessa administração foi a má gestão da segurança. A questão da luta contra o narcotráfico deixou mais mortos do que na Revolução Mexicana. Sem dúvidas, uma má decisão para o governo mexicano, que mesmo nos últimos anos continuou a sofrer”
Carlos Ogaz, fotojornalista mexicano: “Bem, o México foi governado por mais de 70 anos pelo PRI. Um presidencialismo em que a figura presidencial definia o padrão político para a próxima eleição. Era o presidente quem ditava qual candidato ficaria com o poder e, obviamente, o candidato do PRI combinava os interesses políticos e econômicos. Por muito tempo o México não teve nenhuma oposição formal. Até meados dos anos 80 a oposição estava no movimento estudantil, movimentos de guerrilheiros e de trabalhadores, que foram perseguidos, reprimidos e massacrados pelo Estado mexicano representado pelo PRI. Em outras palavras, houve um sistema de inteligência que torturava, reprimia e assassinava a dissidência política. Mais tarde eles [os opositores] seriam libertados. Muitos oponentes políticos começaram a se inserir na vida institucional. Gradualmente, começou a se desenvolver um movimento de oposição institucional que também deu origem ao Partido de Ação Nacional (PAN). Nos anos 2000 há aquela transição, mas em 2006 e em 2012 acontecem fraudes eleitorais a níveis federais. Na minha opinião, são essas circunstâncias que permitiram tal hegemonia: a primeira foi o aparato de violência de Estado, a violência legitimada pelo Estado para esmagar a oposição. Depois, o maquinário da fraude eleitoral para manter sua hegemonia e a figura do presidencialismo que, por tantos anos, permaneceu sem uma forte oposição”.
Por que só agora o Obrador? [caption id="attachment_136145" align="alignleft" width="270"] O jornalista mexicano Héctor Alfaro (Arquivo Pessoal)[/caption]
Héctor Alfaro, jornalista mexicano: “Com o cansaço da população com relação às más decisões do atual presidente, o projeto da nação apresentado pelo AMLO acabou por ser de grande interesse para professores, cientistas, celebridades e pessoas de grande influência. Isso contagiou os eleitores. Algo que é extremamente raro, além de nunca visto antes, é a facilidade com que o poder foi entregue a este candidato, sem apelar às eleições, sem levantar a voz e apenas aceitar a derrota. O mais estranho foi que o PRI, um partido que deixa o poder, foi o primeiro a aceitar que a tendência da primeira contagem não os favorecia. Em um discurso sem confronto e sem oposição, o porta-estandartes do PRI, José Antonio Meade, baixou a cabeça e expressou seu apoio ao vencedor virtual”.
Carlos Ogaz, fotojornalista mexicano: “Bem, eu acho que essa população está cansada. Como eu disse são 11 anos de guerra supostamente contra o narcotráfico, mas os mortos são a população civil. Há desaparecimentos e deslocamentos forçados, extorsões de controle político em territórios onde o crime organizado está inserido. Há um vácuo de poder em vários territórios. As pessoas não confiam mais nas autoridades municipais, estaduais e federais porque há uma linha turva entre o crime organizado e o Estado mexicano. Há quem chame o México de um narco-Estado. Um caso pragmático é o dos 43 estudantes desaparecidos em Ayotzinapa. Três foram mortos, um está em estado vegetativo. Trata-se de um local onde há envolvimento a níveis municipais, federais e estaduais com o narcotráfico, com a participação do Exército. A linha entre o crime organizado e o governo mexicano desapareceu. Não se poderia relatar um desaparecimento ou um assassinato pelo crime organizado ao governo porque ele é conivente. O país está em total impunidade e reina um desespero terrível, que é o que motiva a esperança que levanta Obrador. Este panorama explica o que permitiu seu alto índice de votação. Talvez não resolva todos os problemas do país, mas há esperança do eleitor que lidou, todos esses anos, com discursos populistas críticos não progressistas. Acho que essas são as circunstâncias que permitiram que PRI perdesse sua hegemonia, basicamente marcada pela possibilidade de guerra e pela desesperança com relação à impunidade e ao terror que existe no México”.
Obrador conseguirá governar?
Héctor Alfaro, jornalista mexicano: “Aparentemente o jogo foi muito bem para o AMLO, com a maioria no Congresso, com a chegada ao governo de seis Estados e a maioria das prefeituras, incluindo a Cidade do México. Isso parece um triunfo sem curvas para o Morena [partido de Obrador]. Tudo indica que não haverá freio para o trabalho político deste projeto de nação impulsionado pelo principal partido de esquerda do país. Nada garante que a velha guarda política mexicana não tenha algo a ver com o triunfo de López Obrador em 1º de julho, mas por enquanto há um sentimento de reconciliação entre as forças políticas do país”.
Carlos Ogaz, fotojornalista mexicano: “Sim, a política mexicana é marcada por fraudes eleitorais, como em 2006 e 2012. Mas creio que Obrador conseguirá governar porque ele firmou alianças com grupos de poder que envolvem empresários, por exemplo, ou ainda com partidos conservadores, como o Partido do Encontro Social, que é uma das alianças mais questionadas”.
O que esperar para o futuro?
Héctor Alfaro, jornalista mexicano: “Como cidadão mexicano, espero que o slogan da campanha encabeçada por AMLO seja cumprido: de juntos fazermos história, pela primeira vez, de manter um estado seguro e justo, recuperar o terreno contra o dólar e alcançar um melhor relacionamento com o governo dos EUA. Espero também uma melhor gestão dos recursos econômicos, redução de impostos e redução no preço de combustíveis. Um declínio da corrupção também é esperado, de modo que esse dinheiro que antes era usado para favores domésticos seja usado para o bem do país”.
Carlos Ogaz, fotojornalista mexicano: “O que espero é que toda a esperança seja traduzida em uma ação transformadora, que todas as pessoas que votaram em Andrés Manuel López Obrador não sejam apenas pessoas que votaram, mas que sejam pessoas críticas. Esperamos que esse governo promova as mudanças com relação às reformas políticas que o país precisa para sair do buraco e da realidade do terror que estamos submersos. Que este governo não se faça de surdo como o PRI fez e como o PAN fez”.
*Héctor Alfaro e Carlos Ogaz são colaboradores da Agência Plano