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Há inúmeras razões que fazem com que o México talvez seja o país que atualmente mais sofra com o narcotráfico e suas consequências, avalia Danillo Avellar Bragança, professor-colaborador do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), que se dedica à pesquisa sobre segurança internacional e narcotráfico desde 2010 e, que, em 2017, lançou o livro “Narcotráfico, Soberania e Relações Internacionais no México”. Mas, para ele, a proximidade geográfica entre o México e os EUA contribui muito para esse cenário.
“Não é só uma proximidade, é uma vantagem geográfica. Pensando em uma economia muito lucrativa e que movimenta imensos recursos no planeta inteiro, ter essa vantagem geográfica contribui diretamente para o avanço do narcotráfico no país. Outro aspecto que merece ser destacado é a maneira pela qual o Estado mexicano e suas estruturas têm relação direta com grupos de narcotraficantes. “O que a gente visualiza é que nessa relação os dois ganham. São praticamente indissociáveis, eu não sei onde termina um e começa o outro. Isso, evidentemente, interfere politicamente no país”. Leia, à seguir, a entrevista exclusiva à Fórum concedida pelo especialista.
Fórum - Ao longo dos anos, como a violência e a atuação dos cartéis de drogas afetaram diretamente o povo mexicano?
Danillo Avellar Bragança - A população mexicana sofre muito com os cartéis. Ainda que o problema social do México não tenha começado nos cartéis diretamente, porque se trata de uma sociedade extremamente desigual, construída em torno do colonialismo, da exploração, da subjugação dos povos indígenas. O que existe em relação aos cartéis é muito conflituoso, pois a política de drogas mexicana não é natural do México. É uma política importada, de uma determinação hemisférica, que vem dos EUA. Então, por conta dessas políticas de enfrentamento, muitas vezes as populações locais, os vilarejos, as pequenas cidades, mas também as grandes cidades, ficam no meio do que eu costumo chamar de “três guerras”, que é, na verdade, um desdobramento de uma política que era para ser de amplo espectro, mas que prioriza só um enfrentamento que, na maioria das vezes, não dá certo. O que seriam as “três guerras”. Seria a do Estado propriamente dito contra esses cartéis, o que gera um preço alto de vidas humanas. A gente tem um segundo conflito, que é a guerra entre os cartéis, que são disputas que, muitas vezes, o Estado interfere diretamente, seja sufocando um cartel, seja favorecendo outro. E, na terceira hipótese, a guerra entre eles e autodefesas, que são grupos formados por populares, pessoas de pequenas cidades, vilarejos, que se armam para tentar se defender da invasão dos cartéis em suas cidades. Isso é muito problemático, porque já houve casos de grupos de autodefesa que conseguiram expulsar cartéis da região, mas que incorporaram as rotas de abastecimento de drogas nos EUA e se transformaram em pequenos cartéis. A população, em geral, que não se envolve diretamente, sofre com a espetacularização da violência, muitas vezes num processo de definição de poder desses lugares. Mas, de todo modo, é uma atividade econômica, que coloca muita gente no mercado de trabalho, seja informal, seja ilegal. O México, portanto, também sofre não só com um processo de tráfico de drogas, mas tráfico de gente, de armas, e a população mexicana acaba sofrendo diretamente com essa intensa insegurança social.
[caption id="attachment_136121" align="alignnone" width="584"] Para Danillo Avellar Bragança, a proximidade geográfica entre México e o EUA não explica definitivamente o processo, mas contribui diretamente para o narcotráfico - Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
Fórum - A proximidade geográfica com os EUA, maior mercado consumidor de drogas, contribuiu para o avanço cada vez mais intenso do poder do narcotráfico no México?
Danillo Avellar Bragança - Contribui muito. Não é só uma proximidade geográfica, é uma vantagem geográfica. Pensando em uma economia muito lucrativa e que movimenta economias do planeta inteiro, como a do México, ter essa vantagem geográfica contribui diretamente para o avanço do narcotráfico no país. É claro, que, se não houvesse o consumo de drogas tão acentuado nos EUA, se não fosse um mercado consumidor tão grande, tão vibrante, o México não teria essa função. Existe essa rede geral, essa rede internacional, que tem o México, a Colômbia, o Brasil como rota de passagem. A proximidade geográfica não explica definitivamente o processo, mas contribui diretamente, porque isso garante ao México uma vantagem comparativa em relação a outros países. Ressalto: as políticas de enfrentamento direto só causaram deslocamentos geográficos dos grandes grupos que atuam na circulação, no processo de levar as drogas da produção até o grande mercado consumidor, que são os EUA. Durante toda a década de 90 foi a Colômbia e as políticas de enfrentamento não resolveram o problema de lá. Pelo contrário, deslocaram a hegemonia desses grupos para o México. Pela questão da proximidade é até melhor do que a Colômbia.
Fórum - Por que os cartéis têm tanta força, seria por manterem ligações com os governos? E em que medida o narcotráfico e a violência consequente do processo influenciam nas relações do México com outros países?
Danillo Avellar Bragança - Essas perguntas são complementares. O que eu falo no meu livro é exatamente isso: a maneira pela qual o Estado mexicano e suas estruturas no nível federal, estadual e municipal têm relação direta com grupos de narcotraficantes de maior ou menor escala. O que a gente visualiza é que essa relação é de simbiose, ou seja, os dois ganham. São praticamente indissociáveis, eu não sei onde termina um e começa o outro. Isso, evidentemente, interfere politicamente no país. Para exemplificar, o irmão de Carlos Salinas de Gortari, que foi presidente entre 1988 e 1994, era procurado por tráfico internacional de drogas pelas autoridades norte-americanas. Então, há influência direta em nível presidencial. Mas, também, em um nível mais baixo, esses grupos não chegam a se institucionalizar, mas interferem diretamente em eleições, no processo decisório. Isso fica muito claro, por exemplo, quando você vê o número de mortes muito acentuado de políticos nessa última eleição. Isso contrasta com o Brasil. A história da Marielle Franco, um crime que chocou bastante a gente aqui, lá é mais senso comum do que se imagina. O objetivo mesmo é eliminar quem, politicamente, se coloca contra os interesses dos cartéis. Por conta desse quadro complexo, as relações mexicanas passam a ter esse componente. É claro que o signo norte-americano determina absolutamente tudo. Então, as próprias políticas em relação à América do Norte, via Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, bloco econômico formado pelos EUA, Canadá e México), e à América Central, via Comunidade dos Estados Centro-Americanos, sofrem interferência, ainda que mais indireta, desses grupos narcotraficantes. Só que, na verdade, o grande objetivo deles é puramente econômico. Então, os interesses também são da pauta econômica. Tem a ver, inclusive, com a corrupção fiscal, dos agentes de segurança. O México não tem uma grande tradição em política internacional, apesar do seu tamanho. A diplomacia mexicana é muito fechada em si. Talvez o López Obrador mude um pouco isso, dê uma cara mais aberta à diplomacia mexicana. Mas o fato é que, em termos de política internacional, o México sempre sofreu algum tipo de constrangimento em relação a isso.
Fórum - O presidente Peña Nieto é acusado de ter deixado o México afundar ainda mais na violência do narcotráfico, devido à fragmentação dos cartéis, que beneficiou a cultura da impunidade e à corrupção. Essa fragmentação dos cartéis pode ser explicada por uma aposta errada de Peña Nieto, que prendeu Joaquín El Chapo Guzmán, chefe do poderoso cartel Sinaloa, o que o levou a acreditar que estava dando um tiro certo para derrotar o narcotráfico?
Danillo Avellar Bragança - Esse é um ponto interessante. O que aconteceu com a política do Peña Nieto era bastante esperado. Ao oferecer uma solução tradicional e de enfrentamento de combate ao narcotráfico, ele só repetiu políticas de gestões anteriores. Não houve muita coisa de novidade nessa lógica do que se chama de “guerra às drogas”. O que houve é que o Peña Nieto, a gente não sabe se intencionalmente ou não, é que se você for observar a dispersão geográfica das operações que o exército mexicano empreendeu durante o mandato dele, todas elas tiveram como objetivo secundário ou indireto o enfraquecimento do cartel de Sinaloa. O que isso representa na prática? Sinaloa era o maior grupo de narcotráfico internacional do mundo, sediado no México, e que mantinha o sistema em relativo equilíbrio. Era um grande grupo e, por conta do poderio econômico, de armas etc, trazia ao sistema uma condição de oligopólio o que fazia com que o mercado fosse rateado entre esses grupos que faziam parte do esquema. Isso provocava uma estabilidade. Os níveis de violência chegaram até a diminuir, quando o cartel de Sinaloa era o fiel da balança desse sistema. Peña Nieto ao atacar o cartel de Sinaloa, promovendo a prisão de seu chefe, Chapo Guzmán, tirou a estabilidade desse sistema. Em um primeiro momento, quando você tira um grande chefe, no plano interno do cartel ocorre um intenso conflito interno por divisão de poder. E, no plano externo, aquelas rotas que eram mantidas pelo cartel de Sinaloa entram também em disputa pelos outros cartéis, que se aproveitam de um momento de instabilidade daquele então cartel dominante. Ou seja, passou-se durante o governo Peña Nieto, de uma fase de estabilidade oligopolista do sistema, em torno do cartel de Sinaloa, para um momento na qual o cartel de Sinaloa foi obrigado a dividir espaço, poder e rotas com outros grupos. O que houve foi a dissipação geográfica da violência. Regiões que antes não eram inteiramente dominadas pela violência dos cartéis foram afetadas. Como consequência disso houve aumento nos índices de violência. Mataram muitos. O ano passado foi o mais violento da história do México. Portanto, o que se tem é uma política que não leva em conta a natureza econômica dos cartéis e os ajustes internos desses grupos, desse sistema, que vai continuar funcionando, independentemente da política. E você não tem uma tentativa de abordar o tema a partir de uma política de amplo espectro, que envolva não só o enfrentamento direto, mas políticas de transferência de renda, de investimento no social, mudança para uma legislação um pouco mais liberal em relação ao consumo de drogas. Tudo isso seria interessante para o México.
[caption id="attachment_136123" align="alignnone" width="271"] Bragança: "Peña Nieto ofereceu uma solução tradicional e só repetiu políticas de gestões anteriores" - Foto: Wikimedia Commons[/caption]
Fórum - Você acredita que a chegada ao poder de Andrés Manuel López Obrador, o líder do Morena, pode reverter esse cenário?
Danillo Avellar Bragança - O que o López Obrador e o Morena representam para o México é um negócio muito grandioso. O tamanho da bancada que ele montou garante que tenha mais de 70% do Congresso. A coligação que fez, que não é uniforme, pode produzir elementos de certa resistência em algumas pautas, mas acho que a mudança é inevitável. Por exemplo, a anistia não é uma novidade. Já houve na Colômbia e a própria população rechaçou esse tipo de política, caiu muito mal na sociedade colombiana. É uma coisa que estados norte-americanos fazem, que é anistiar crimes leves e trazer todo um contingente populacional que é envolvido no narcotráfico, mas não tem um envolvimento profundo, trazer esse pessoal de volta e ressocializar. Isso significaria muito. Significaria garantir uma grande quantidade de pessoas que não têm chance de voltar a uma vida natural, normal, uma possibilidade de isso acontecer. Então, é preciso ver em que aspecto essa anistia seria possível. Não seria o que o Juan Manuel Santos fez na Colômbia, via plebiscito, porque o Obrador tem grande apoio no Congresso e essas medidas devem vir pelo caminho legislativo. Enfim, acho que a eleição do Obrador é uma importante mudança para o México. É um alento de ver que o poder dos partidos tradicionais foi rompido afinal